Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Rastros

 






Em uma mesma estrada,

estrada de terra, 

terra arenosa, no ermo do cerrado, onde não se ouve nenhuma conversa que seja,

os rastros vão minguando.

Os rastros são mesmo dos companheiros, de conhecidos,  benquistos, de muitos até mal vistos.

E o caminho já está fundo, cortado como é,  pela lâmina das máquinas,

lâminas  que escavam também os dias.

Mas é que tudo se comunica, se enrosca, como num novelo,

onde não se enxerga o início,

nem o fim.

Assim se entende, como se vai mesmo entender,

que qualquer daqueles que vão conosco pelos caminhos pisados, de poeira,

andam junto da gente por muitas das nossas precisões,

para o clarear das ideias.

Andam junto da vida, qualquer tipo de vida.

E quando damos falta, a lida de um dia parece que nem termina, 

e tudo vai ficando como que por ser arrematado.

É que vamos esquecendo que o arremate só termina com um palpite, pouca prosa que seja.

E assim o cortado da foice  não é de todo cortado,

o conselho não vem como vinha, diante do suor e cansaço.

As mãos já pouco se movimentam, os acenos vão ficando nos cantos, nos cantos dos trilhos, das enxurradas.

E aí já nem rompem mais o silêncio medonho, o medonho da solidão.

E quando mesmo a claridade vai sumindo, os rastros somem primeiro.

E a lida vai ficando sentida.

Mal vivida.

Não aumenta de pronto a saudade.

Aumenta aos pingos, nas pontas dos ramos,

no breu da noite,

no apontar do sol.

É assim que muitos devem sentir a falta dos que se vão,

talvez o gosto que fica no estalar da língua.

E quando os dias vão correndo,

quando o tempo vai escorrendo,

vai brotando mais e mais a vontade,

de ver a figura de qualquer destes conhecidos, 

lá bem no meio da esperança que ainda se alcança,

no cabo da enxada,

lá no alto da estrada. 



sábado, 12 de dezembro de 2020

Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 13, versículos de 3 a 13

 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.

                                                                                                                        1 Coríntios 13:13



E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
Agora, pois, permanecem...

1 Coríntios 13:3-13





quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Um grande caramujo terrestre, gastrópode do gênero megalobulimus

 Determinados moluscos são capazes de secretar uma concha espiralada composta de carbonato de cálcio (natureza calcária, semelhante aos ossos), com tamanho variando entre 7 e 15 cm. Alguns deles pertencem ao gênero megalobulimus. Eles são herbívoros alimentando-se de folhas e raízes vegetais em decomposição. Existem algumas espécies carnívoras que podem se alimentar de minhocas, larvas.




A concha de um caracol. Imagem: Cláudio Gontijo


Possuem hábitos noturnos, onde se movimentam mais, e buscam locais úmidos. Enterram-se nestes locais, geralmente junto à base de vegetais. Durante o dia procuram afastar-se da exposição à luz do sol, escondendo-se desta luminosidade. Aparecem com mais frequência em períodos chuvosos.

Estes moluscos (animais de corpo mole) pertencem à classe dos gastrópodes (pés próximos à região visceral). Possuem três partes principais:

a- Massa visceral - onde estão a maior parte dos seus órgãos como: estômago, intestino, pulmão.

b- Pés - estrutura muscular ligada ao manto utilizada para a locomoção.

c- Manto - localizada abaixo da massa visceral, é uma estrutura que se mostra em grande parte no meio externo à concha. É responsável por secretar esta concha  abrigando poros genitais e órgãos do aparelho reprodutor.  


 

Reprodução

A maioria dos caramujos são hermafroditas, ou seja, possuem os dois órgãos reprodutores localizados no manto. A fecundação geralmente ocorre de forma cruzada, o órgão sexual de um indivíduo fecunda o do outro e vice-versa. O acasalamento pode durar em média 10 horas.

Após a cópula cavam a superfície do solo e depositam cerca de 20 ovos, que eclodem em duas semanas. Existem determinadas espécies com alta frequência de reprodução, capazes de depositar em média  200 a 400 ovos.


Rádula

Ocorre na boca uma estrutura denominada rádula. Esta língua rudimentar, com minúsculas protuberâncias, funcionam como dentes e ralam, cortam, os alimentos a serem ingeridos.








O manto abrigando a região cefálica com tentáculos (olhos nas extremidades) e que também possuem boa capacidade sensorial.  A maioria destas espécies possuem visão limitada. Imagens: Cláudio Gontijo



Os pés e o manto são capazes de secretar uma substância mucosa que facilita a locomoção. Em situações adversas como a aproximação de um predador, o manto é recolhido e uma membrana pode fechar a abertura da concha. Muitas espécies são capazes de produzir toxinas que afugentam estes predadores.






Os caramujos podem viver de 12 a 14 nos. Existem mais de 90.000 espécies destes moluscos, incluindo os que vivem também no ambiente aquático.

Muitos destes caramujos terrestres estão em risco de extinção em função da destruição do seu habitat.
Originalmente na vegetação da mata atlântica e nas matas ciliares.



quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Os Vagalumes e a bioluminescência; luz que não produz calor

 Nas noites de verão, geralmente no início da estação chuvosa, é possível avistar lampejos luminosos que se movimentam na escuridão. Estas luzes fazem parte, na verdade, de um ritual de acasalamento dos vagalumes. Neste ritual os vagalumes produzem luminosidade por meio de reações químicas que ocorrem no seu corpo. 

O fenômeno é chamado de bioluminescência, onde uma substância (luciferina) sofre oxidações gerando a luminosidade que se compõe de 95% de luz e apenas 5% de calor. Ou seja, a luz que estes insetos produzem não gera calor, é fria. É possível verificar isso quando temos a oportunidade de segurá-los. 

Os vagalumes podem controlar perfeitamente a emissão desta luminosidade. Eles emitem maior ou menor quantidade de luz, alteram a sua frequência e ocasião, estas variações são formas de comunicação durante este ritual para a reprodução.




Existem no mundo cerca de 2000 espécies conhecidas. No Brasil mais de 400 espécies. Estes insetos são da ordem coleóptera (a mesma dos besouros e joaninhas). Os coleópteros possuem um par de asas mais rígidas abrigando, logo abaixo, outro par mais flexível. 

Os machos produzem a luz em um primeiro momento, atraindo a fêmea para o ritual de acasalamento. A fêmea também emite a luminosidade e voa para efetuar a cópula. Após o acasalamento produzirá ovos que irão eclodir e gerar as larvas. Estas larvas e a forma adulta vivem em média 3 anos. A maior parte deste tempo na forma larvária. Após a sua metamorfose atingem a forma  adulta viverão mais 3 a 4 semanas. A larva vive em locais mais úmidos do solo (debaixo de madeira em decomposição ou em pequenos túneis) e se alimenta de substâncias vegetais encontradas nas raízes e pequenos caules, moluscos, insetos menores. Ela entrará em desenvolvimento, terminando-o na forma adulta e acasalando. O ciclo se fecha.





O número destes insetos vem diminuindo sensivelmente. O corte das matas, da vegetação do cerrado (por exemplo), acaba por destruir o habitat destes insetos. Os agrotóxicos também contribuem para a sua destruição. 

Além destes fatores, o excesso de luminosidade artificial (iluminação noturna elétrica) ofusca os seus lampejos e interfere no acasalamento. A luz artificial torna difícil a comunicação entre machos e fêmeas, que passam a ter dificuldade de interpretar as variações luminosas. O acasalamento, desta forma, diminui.






terça-feira, 22 de setembro de 2020

Ecdise





Penso que a mudança é pela vida, para que traga mais vida.

Penso que tudo muda, que não há o que não se altere.

Penso que a mudança vem e todas as coisas se renovam.

Penso até que há urgência nisso.

Penso que a vida sempre pede mais vida.










Imagens: Cláudio Gontijo

sábado, 22 de agosto de 2020

Histórias do Sertão 11: A conversão do Juca Ramiro

 





Aconteceu que numa madrugada de tempo fresco Juca Ramiro acordou sem forças para movimentar suas pernas, para movimentar qualquer parte do corpo já carcomido, envelhecido. A dor que parecia cortar seu peito, não pôde ser guardada numa das seringas. Muitas delas foram esvaziadas e o temido Juca, das terras e das muitas cabeças de gado, dos muitos agregados, das generosas gorjetas para o que quer que comprasse, foi levado e acomodado entre os inúmeros aparelhos de uma sala. Nem seu semblante carrancudo, sua voz impaciente, pode evitar que permanecesse ali por vários dias. Ataque do coração. Foi entregue em papel bem escrito aos seus diversos filhos. 

Como o Juca era viúvo já há alguns anos, restou-lhe a Maria do Socorro. Mulher miúda, de olhos entristecidos, vivos. Maria caminhava rápido fazendo ranger as tábuas do velho casarão. Apressava em providenciar os desejos azedos daquele homem acostumado aos horários sem qualquer atraso. O que aquela mulher servil  carregava em qualquer tempo era um livro, grosso, de páginas remexidas, amareladas. As letras da capa dura indicavam que eram parágrafos de fé. Marcada em vários pontos, tinha palavras sublinhadas, circuladas, anotadas no rodapé. Ela ainda tinha mesmo alívio para suas dores nos cultos da pequena igreja, no salão pintado em cores fortes, onde os sermões eram quase que gritados por um homem que dizia ser abençoado, chamado por Deus para conduzir aquelas poucas almas que cantavam alto, louvando, batendo palmas. 

Por muitos dias Maria se acostumou a deixar o seu livro aberto já bem perto do Juca. O homem ia lendo a escrita confusa, não sabia o que de fato dizia. Mas encontrava curioso aquelas páginas ao alcance das mãos trêmulas. Deu então para resmungar com aquela que o servia, sem afastar de todo a curiosidade. Ralhava com a criada, maldizia, em poucas palavras, para perguntar só o que dizia de fato aquela escrita. E ia atiçando a curiosidade. Com os dias já pegava-se de joelhos, de olhos úmidos, de mãos atadas, em preces sem rumo. 

O Juca envelhecia a cada dia, sem querer medir os pastos, sem mexer com os maços de notas guardados no cofre, junto à carabina, num canto do quarto. Juca queria mesmo era chamar a Maria do Socorro, a Maria da fé, que ia agradando, parecendo-lhe mais alinhada, até perfumada. O Juca acabou mesmo por se engraçar por aquela que o servia. Passou a reservar lhe uma conversa mais baixa. Já não lhe era de todo estranho esperar a passagem do domingo à espera do seu livro sagrado, que vinha logo no começo da semana, junto aos afazeres daquela criada. Já apreciada. Até desejada.

Na sua solidão, naquele árido de verde e companhia, Maria pensou, orou, clamou, glorificou. Até que ia se resolvendo pelos olhares do velho moribundo. Até que foi remexendo as idéias, assentando seus pálidos sentidos. E foi assim caminhando para o casarão. Já tinha seu quartinho reservado. Seus ganhos mais ajeitados. E os cultos ficaram quase que nem sempre lembrados. 

O Juca resolveu-se de todo e chamou Maria para companheira. Não tinha mais esposa, nem filhos que viessem àquela casa, nem nenhum conhecido que se arriscasse a contar, escandalizado, aquele romance. Maria afastou-se assustada, não desejava união sem regra, sem bençãos, sem o consentimento das orações. O velho não aceitava o casamento. Maria não queria aquela vida. Juntou então seus pertences, apressou o passo e foi se embora.

Juca Ramiro caiu acabrunhado. Mal se achegava à varanda. Já nem sabiam das suas ordens. Agarrou-se ainda mais ao livro. Lia e se engasgava, amuava ainda mais. Queria mesmo os ensinamentos da Maria. Queria seus caldos, seus cuidados, seu silêncio. Queria Maria de volta. 

Enviou a ela um bilhete onde se acertava com o casamento. Acordou-se com o vigário, achando-se agora de todo salvo e iluminado. Continuaria com os donativos, mas casaria no acanhado templo dos irmãos da sua Maria. E assim se deu o ocorrido. 

Diante da velhice e do tempo, nunca houve, de fato, completa união. Conta-se que ele se converteu de todo. Vendeu o gado, as terras. Vieram, afinal, todos os seus; raivosos. Quiseram internar o João. Mas não houve um laudo sequer, nenhum achado de loucura. 

Em teimosia e fervor, esqueceu a avareza, doou o que apurou para a caridade. Comprou casa pequena na cidade. Lá terminaria seus dias junto às leituras, quitandas, e, agora, pregações, de sua Maria do Socorro.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Oração para a noite







Senhor, se queres, podes purificar-me!




Rezemos cinco Pai Nossos, para cada uma das Cinco Santas Chagas de Cristo.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Histórias do sertão 10: o João da Cota






O som era de palmas mal batidas, sentidas, palmas de mãos fracas e tortas. Palmas abafadas pelo grosso dos calos. Nem todos ouviam. Mas ele permanecia diante da casa, em pé, de fora das cercas de arame farpado. Outras vezes apoiado em alguma estaca,  no passeio de chão duro, um barranco fora do nível. Corpo encurvado. Joelhos que pareciam estar se dobrando com o tempo. A calças eram largas, sujas, amarrotadas, pisadas, e tinham sempre a barra gasta, arrastada pelo caminhar. Botinas de bico quase que de todo aberto. O cordão barbante apertava a cintura.

Alguém que o avistasse à porta, vinha logo. Muitos o temiam. Mas muitos sabiam. Sabiam que buscava sempre, e só, o café. Mas diziam que os seus olhos carregavam o mal olhado. Diziam que se fosse certeiro sobre um pequeno que fosse, amaldiçoava. Adoentava. Apertava o crescimento. Desfalecia.

Mas nunca foi de todo esquecido. Era até mesmo querido. Pelos anos a fio. Pelas rezas que afirmavam sair como um cochicho de sua boca de poucos dentes. Rezas no árido da vida trabalhosa, penosa. Curava muitos dos males curtidos sob o sol daquela terra quente e seca.

Juravam que já havia vivido mais de 100 anos, na pele negra, nos olhos amarelados, velados, fundos, no semblante de pouca fala. Uma figura sem igual no sertão do Velhas. Punha o medo, punha um certo silêncio, um restolho de sabedoria, e saia de novo sem rumo. Gostava mesmo era de andar pelas estradas de terra e poeira. Era visto em povoados diversos. Não cabiam as contas de quanto era capaz de perambular.

Houve mesmo um dia em que assentou-se no tronco seco, largado ali há muitos anos. Nesta ocasião negaram-lhe a porta aberta. E a sua parada, dada como certa, terminou por ali mesmo. A mulher, desconfiada, amuada, acabou por ficar debaixo do tingui, ao fundo do casebre. Embalava o choro de um menino que não desejava o peito e nem a quietude da tarde. Era febre. O mal ficava, não se estancava.

Continuava ali o João da Cota. Olhava a estrada sem viva alma quando ouviu os gritos daquela por demais aflita. Ajeitou-se com dificuldade, firmou as pernas e seguiu até a casa. Deu a volta. Resmungou e pediu a criança. A mãe recuou. Ele puxou e a deitou nos braços. Olhou, não se sabe se ouviu ao certo. Mas conta-se que o pequeno calou e, à sombra da árvore, sorriu em alívio, um riso de vida. Diante de toda aquela lida.

Foi então  que lhe foi tomado às pressas, em ríspido gesto, aquele inocente. O  João não resistiu. Agora tombava. Escapou do cajado em que se apoiava, um cabo velho de enxada, e caiu. Muitas vezes contido, agora destruído. Seu tempo acabou.

O corpo foi velado ali mesmo, no lugarejo. Na acanhada capela, diante do peso da notícia, ninguém se atreveu a entrar. Nem a rezar. Algum sinal da cruz e a fumaça das lamparinas. Permaneceu lá mesmo, inerte, noite a dentro. Até que se resolveu pelo enterro. Naquela escuridão. Sem mais demora. Já fora de hora. Sem qualquer promessa.

Aquele menino cresceu. Virou homem feito. Deixou a família. Não parava em nenhum lugar. Diziam ter herdado a sina do João. Falava-se até mesmo que podia escutar as palmas, as almas. Eram noites de vento forte. Noites enluaradas, na beira das estradas.