Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

sábado, 22 de agosto de 2020

Histórias do Sertão 11: A conversão do Juca Ramiro

 





Aconteceu que numa madrugada de tempo fresco Juca Ramiro acordou sem forças para movimentar suas pernas, para movimentar qualquer parte do corpo já carcomido, envelhecido. A dor que parecia cortar seu peito, não pôde ser guardada numa das seringas. Muitas delas foram esvaziadas e o temido Juca, das terras e das muitas cabeças de gado, dos muitos agregados, das generosas gorjetas para o que quer que comprasse, foi levado e acomodado entre os inúmeros aparelhos de uma sala. Nem seu semblante carrancudo, sua voz impaciente, pode evitar que permanecesse ali por vários dias. Ataque do coração. Foi entregue em papel bem escrito aos seus diversos filhos. 

Como o Juca era viúvo já há alguns anos, restou-lhe a Maria do Socorro. Mulher miúda, de olhos entristecidos, vivos. Maria caminhava rápido fazendo ranger as tábuas do velho casarão. Apressava em providenciar os desejos azedos daquele homem acostumado aos horários sem qualquer atraso. O que aquela mulher servil  carregava em qualquer tempo era um livro, grosso, de páginas remexidas, amareladas. As letras da capa dura indicavam que eram parágrafos de fé. Marcada em vários pontos, tinha palavras sublinhadas, circuladas, anotadas no rodapé. Ela ainda tinha mesmo alívio para suas dores nos cultos da pequena igreja, no salão pintado em cores fortes, onde os sermões eram quase que gritados por um homem que dizia ser abençoado, chamado por Deus para conduzir aquelas poucas almas que cantavam alto, louvando, batendo palmas. 

Por muitos dias Maria se acostumou a deixar o seu livro aberto já bem perto do Juca. O homem ia lendo a escrita confusa, não sabia o que de fato dizia. Mas encontrava curioso aquelas páginas ao alcance das mãos trêmulas. Deu então para resmungar com aquela que o servia, sem afastar de todo a curiosidade. Ralhava com a criada, maldizia, em poucas palavras, para perguntar só o que dizia de fato aquela escrita. E ia atiçando a curiosidade. Com os dias já pegava-se de joelhos, de olhos úmidos, de mãos atadas, em preces sem rumo. 

O Juca envelhecia a cada dia, sem querer medir os pastos, sem mexer com os maços de notas guardados no cofre, junto à carabina, num canto do quarto. Juca queria mesmo era chamar a Maria do Socorro, a Maria da fé, que ia agradando, parecendo-lhe mais alinhada, até perfumada. O Juca acabou mesmo por se engraçar por aquela que o servia. Passou a reservar lhe uma conversa mais baixa. Já não lhe era de todo estranho esperar a passagem do domingo à espera do seu livro sagrado, que vinha logo no começo da semana, junto aos afazeres daquela criada. Já apreciada. Até desejada.

Na sua solidão, naquele árido de verde e companhia, Maria pensou, orou, clamou, glorificou. Até que ia se resolvendo pelos olhares do velho moribundo. Até que foi remexendo as idéias, assentando seus pálidos sentidos. E foi assim caminhando para o casarão. Já tinha seu quartinho reservado. Seus ganhos mais ajeitados. E os cultos ficaram quase que nem sempre lembrados. 

O Juca resolveu-se de todo e chamou Maria para companheira. Não tinha mais esposa, nem filhos que viessem àquela casa, nem nenhum conhecido que se arriscasse a contar, escandalizado, aquele romance. Maria afastou-se assustada, não desejava união sem regra, sem bençãos, sem o consentimento das orações. O velho não aceitava o casamento. Maria não queria aquela vida. Juntou então seus pertences, apressou o passo e foi se embora.

Juca Ramiro caiu acabrunhado. Mal se achegava à varanda. Já nem sabiam das suas ordens. Agarrou-se ainda mais ao livro. Lia e se engasgava, amuava ainda mais. Queria mesmo os ensinamentos da Maria. Queria seus caldos, seus cuidados, seu silêncio. Queria Maria de volta. 

Enviou a ela um bilhete onde se acertava com o casamento. Acordou-se com o vigário, achando-se agora de todo salvo e iluminado. Continuaria com os donativos, mas casaria no acanhado templo dos irmãos da sua Maria. E assim se deu o ocorrido. 

Diante da velhice e do tempo, nunca houve, de fato, completa união. Conta-se que ele se converteu de todo. Vendeu o gado, as terras. Vieram, afinal, todos os seus; raivosos. Quiseram internar o João. Mas não houve um laudo sequer, nenhum achado de loucura. 

Em teimosia e fervor, esqueceu a avareza, doou o que apurou para a caridade. Comprou casa pequena na cidade. Lá terminaria seus dias junto às leituras, quitandas, e, agora, pregações, de sua Maria do Socorro.