Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

domingo, 17 de maio de 2020

A doutora e os respiradores










Uma médica deu uma sugestão. Era endereçada àqueles que pediam a reabertura do comércio durante um grande surto.  Eles leram a opinião da médica em aparelhos sofisticados. Outros viram no noticiário em grandes salas.

Colocariam os funcionários de suas empresas na linha de frente; nos balcões, nas ante-salas, entre as mesas, dariam continuidade aos negócios. A doença havia se disseminado mas os empregados se contaminariam por eles. Caso algum vírus violasse as suas residencias havia a possibilidade de encontrarem respiradores nos hospitais cobertos pelos abrangentes planos de saúde.

Quando a doutora sugeriu que estes bons empreendedores, que desejavam desbloquear todo o comércio, assinassem um termo de compromisso abrindo mão dos tais respiradores, eles nada disseram. "Que dispensassem, então, os respiradores". Foi a sugestão da médica. "Médica de lugarejos sem mapa", disseram eles.

Aconteceu que estes homens de negócios foram até os diretores de hospitais, até os seus médicos particulares. Talvez tenham determinado a eles que lhes reservassem leitos. Esta reserva seria feita a partir de contrapartida compensadora.

Moradores de um aglomerado também viram a notícia que falava daquela jovem doutora. Viram no noticiário, na hora do almoço, diante da TV. Ainda que estivessem pagando as prestações daquele novíssimo aparelho, ainda que tivessem que responder ao chamado urgente do seu gerente, guardaram as palavras daquela doutora. Iriam reproduzi-las nas cozinhas dos restaurantes, nos grandes canteiros de obras, nos corredores de prateleiras coloridas. Mas muitos não tiveram como realizar tal desejo. Foram dispensados. Os que ficaram também tiveram dificuldades. Alguns dos colegas confidentes estavam isolados, outros permaneciam em hospitais lotados, outros já tinham partido.

Agregados de uma extensa fazenda também se depararam com a notícia. Comentaram com seus encarregados no refeitório. Quase se negaram  a receber os caminhões de medicamentos veterinários. Mas acabaram por concluir que aquela doença estava longe dali. Decidiram permanecer onde estavam, em alojamentos, com o seu já escasso salário garantido no final do mês.

Assim a ideia daquela doutora, que diziam ser de esquerda, foi se desbotando até desaparecer por completo. Dissolveu-se nas cores das bandeiras de passeatas. Bandeiras das janelas de carros  que a médica não poderia comprar.  Mesmo com todos os seus cursos, estágios, economias. 

A vida e a lida teriam continuado se o planejado tivesse acontecido. Os protestos até que funcionaram. Tudo foi reaberto. Mas faltaram os tão guardados respiradores. Muitos daqueles endinheirados acabaram por vir ao mesmo tempo para seus leitos especiais nos hospitais e os aparelhos não tinham como respirar para todos. Mesmo com todas as máscaras, luvas, antissépticos. Mesmo com todo o estoque de alimento que havia em seus armários. Mesmo com todos os entregadores de encomendas que vinham até a sua porta, quase todos adoeceram ao mesmo tempo.

O mercado parecia ter adoecido também. Os investimentos tinham sido contaminados. A moeda escasseou. Correram então para ir ao encontro de todos os poderosos eleitos, infectologistas, matemáticos.  Não havia solução que abastecesse de novo os cofres.

Aqueles que ainda podiam pagar, chegaram a comprar, encomendar, cultos, videntes, drogas promissoras. Falsificaram notícias. Mas os que haviam se salvado já não podiam visitar seus pais, seus filhos, seus parceiros de negócios.

Então chegou o dia em que todos já podiam opinar. Agora os microfones estavam mais ávidos. E muitos puderam ouvir ou tiveram que ouvir. Vieram os operários da linha de frente e se juntaram aos executivos. Choraram, enfim, juntos. Permaneceram assim à espera do antídoto que dispensasse os respiradores.

Um dia, quando tudo já havia sido gasto, a vacina chegou. Muitos se curaram. Muitos se cumprimentaram. Muitos se indignaram. Mas já não havia tantos bancos, tantas indústrias, tanto dinheiro. Havia mesmo, agora, ruas lotadas. E todos caminharam ao mesmo tempo, todos iguais, com as mesmas pernas. Não havia mais ricos e nem pobres.

Mas e a médica? Onde estava agora? Disseram que havia se contaminado em um hospital de campanha. Curou-se. Propuseram-lhe uma candidatura política. Não se sabe ao certo o seu paradeiro.