Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

terça-feira, 16 de junho de 2020

Histórias do sertão 10: o João da Cota






O som era de palmas mal batidas, sentidas, palmas de mãos fracas e tortas. Palmas abafadas pelo grosso dos calos. Nem todos ouviam. Mas ele permanecia diante da casa, em pé, de fora das cercas de arame farpado. Outras vezes apoiado em alguma estaca,  no passeio de chão duro, um barranco fora do nível. Corpo encurvado. Joelhos que pareciam estar se dobrando com o tempo. A calças eram largas, sujas, amarrotadas, pisadas, e tinham sempre a barra gasta, arrastada pelo caminhar. Botinas de bico quase que de todo aberto. O cordão barbante apertava a cintura.

Alguém que o avistasse à porta, vinha logo. Muitos o temiam. Mas muitos sabiam. Sabiam que buscava sempre, e só, o café. Mas diziam que os seus olhos carregavam o mal olhado. Diziam que se fosse certeiro sobre um pequeno que fosse, amaldiçoava. Adoentava. Apertava o crescimento. Desfalecia.

Mas nunca foi de todo esquecido. Era até mesmo querido. Pelos anos a fio. Pelas rezas que afirmavam sair como um cochicho de sua boca de poucos dentes. Rezas no árido da vida trabalhosa, penosa. Curava muitos dos males curtidos sob o sol daquela terra quente e seca.

Juravam que já havia vivido mais de 100 anos, na pele negra, nos olhos amarelados, velados, fundos, no semblante de pouca fala. Uma figura sem igual no sertão do Velhas. Punha o medo, punha um certo silêncio, um restolho de sabedoria, e saia de novo sem rumo. Gostava mesmo era de andar pelas estradas de terra e poeira. Era visto em povoados diversos. Não cabiam as contas de quanto era capaz de perambular.

Houve mesmo um dia em que assentou-se no tronco seco, largado ali há muitos anos. Nesta ocasião negaram-lhe a porta aberta. E a sua parada, dada como certa, terminou por ali mesmo. A mulher, desconfiada, amuada, acabou por ficar debaixo do tingui, ao fundo do casebre. Embalava o choro de um menino que não desejava o peito e nem a quietude da tarde. Era febre. O mal ficava, não se estancava.

Continuava ali o João da Cota. Olhava a estrada sem viva alma quando ouviu os gritos daquela por demais aflita. Ajeitou-se com dificuldade, firmou as pernas e seguiu até a casa. Deu a volta. Resmungou e pediu a criança. A mãe recuou. Ele puxou e a deitou nos braços. Olhou, não se sabe se ouviu ao certo. Mas conta-se que o pequeno calou e, à sombra da árvore, sorriu em alívio, um riso de vida. Diante de toda aquela lida.

Foi então  que lhe foi tomado às pressas, em ríspido gesto, aquele inocente. O  João não resistiu. Agora tombava. Escapou do cajado em que se apoiava, um cabo velho de enxada, e caiu. Muitas vezes contido, agora destruído. Seu tempo acabou.

O corpo foi velado ali mesmo, no lugarejo. Na acanhada capela, diante do peso da notícia, ninguém se atreveu a entrar. Nem a rezar. Algum sinal da cruz e a fumaça das lamparinas. Permaneceu lá mesmo, inerte, noite a dentro. Até que se resolveu pelo enterro. Naquela escuridão. Sem mais demora. Já fora de hora. Sem qualquer promessa.

Aquele menino cresceu. Virou homem feito. Deixou a família. Não parava em nenhum lugar. Diziam ter herdado a sina do João. Falava-se até mesmo que podia escutar as palmas, as almas. Eram noites de vento forte. Noites enluaradas, na beira das estradas.