Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

domingo, 19 de junho de 2022

Histórias do Sertão 12: Pedro Bigode








Se a memória não está de todo manchada, conheci aquele homem há pouco mais de 30 anos. Eu o via no interior da sua barbearia, no centro da cidade. A pintura nova dava ar de limpeza. Este dono apreciava o conforto oferecido. E lá estava a sua figura quase sempre de pé, com camisa de bom tecido, sapato engraxado. O cabelo bem escovado já trazia também a barba grisalha e muito aparada.  


Pedro Bigode não carecia de rodear muito a cadeira de ferro. Tinha perícia, tinha habilidade com os dedos,    no deslizar do pente. Quase nem se ouvia o barulho de sua tesoura desenhando todos os cortes. Agradava homens vaidosos e outros só práticos. Atendia também aqueles que traziam pouco tempo, sem disposição para muita prosa.


Talvez pela fama, talvez pela dinheirama que recebia ao final do expediente, ou  pela boa natureza  herdada, tinha sorriso largo, postura firme. O corpo se movimentava  resolvido e a mesma fama corria longe. A fala era espirituosa mas preferia ouvir, silencioso. Parecia confortar com a sua discrição bem calculada. Oferecia a compreensão de um bom ouvinte, estampava uma figura até mesmo carinhosa.


Dava gosto até de ficar por ali nos bancos de espuma, foleando os jornais pardos, de noticias passadas. Alguns iam todos os dias e, já não tendo o que retocar, espiavam outras cadeiras ocupadas. Pedro tinha mesmo um negócio de bom rendimento, tinha mais empregados, bem escolhidos.


Todo o tempo passou, como nem se pode mesmo evitar. E, se há o que reclamar, o melhor é recolher, guardar bem guardado. Habituar na disciplina de pensar o que nos convém; o que não nos pesa tanto. E assim aquele barbeiro estava agora à porta, envelhecido pelos seu 75 anos, de cabeleira branca, difícil de ajeitar. O interior daquela sala de maior espaço só tinha agora a sua cadeira. Tudo já parecia acanhado, desbotado pelos anos. Não havia ninguém ali.  


Quando o vi já quase no passeio tive curiosidade. Muitas vezes passei por aquela fachada, diversas vezes li o nome escrito na parede, acima da entrada. Pedro Bigode. E pelo momento trabalhoso que todos vamos atravessar, pelo vazio na tarde fria, resolvi entrar. E foi então que de maneira inesperada, pelo tom da fala, ouvi a sua voz agora ainda mais cautelosa. Dentro de toda aquela simplicidade, daquele local que parecia esquecido, experimentei mesmo, além do corte ainda caprichoso, a calma e a sabedoria de um homem como poucos que avistamos nas empreitadas. Quase não se percebia os seus movimentos, e toda a sua silhueta era naquele momento de total sutileza, jeitosa pela prática de 50 anos. Talvez por toda uma existência dedicada a um único ofício, tirou de mim estas palavras que descrevem alguma parte daquilo que vivi ali. O Pedro sábio.


Muitos dos que hoje já apreciam lojas de estilo, jovens que são, e não há qualquer reparo nisso, só perdem mesmo a possibilidade de aprenderem um bocado a mais. Ouvir aquela voz que, por si só, já reproduz de pronto o acolhimento. Mas hoje o bom nome não costuma mais correr em assuntos de varanda, vai se  esparramando eletronicamente. E como o mundo das pequenas telas nem sempre reproduz a imagem certa, o Pedro de Palma ficou mesmo foi esquecido. Pedro Bigode.


Acredito que o Pedro ainda possui certa clientela. Mais envelhecida também, é certo. Do contrário não estaria ali, olhando o movimento dos carros, daqueles que passavam.  Quase ia ficando em branco mais um acontecido, uma outra conversa que tivemos a mais. Concordamos no nosso gosto pelo cultivo das plantas de frutas. Ele disse que fazia inúmeras mudas para plantio e distribuía para aqueles que assim quisessem. E lá fui eu como acabamos combinando, na hora do seu almoço, buscar uma Goiaba de Quilo; já agora bem plantada. Daqui a alguns anos se eu puder saborear a fruta, me virá novamente na lembrança o Pedro Bigode. Na sua calma e gentileza ainda viverá muito, ofertando muitos cortes, prosas e goiabas de quilo.