Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Histórias do sertão 7: A cegueira








A alguns meses buscávamos levar a Comunhão Eucarística a uma senhora de quase 90 anos. Simples e de fé cristã, moradora de uma casa de portão verde claro, na periferia, distante do centro da cidade. Os anos que se passaram diante dela, roubaram-lhe lentamente a visão. A cegueira aproximou-se e, subitamente, tirou-lhe o equilíbrio, deixou nela a insegurança demonstrada quando fui visitá-la. Seu semblante era de preocupação e dúvida diante de um estranho que ela não podia verificar a fisionomia.

Antes da minha chegada à sua casa, contávamos quase três meses de tentativas e desencontros junto a um sacerdote que desejava ter com ela uma pausa reconciliatória, em Sacramento de Confissão, antes que ela recebesse a Sagrada Comunhão.  Ele desejava receber sua confição. Mas o vasto  e difícil território do município, os inúmeros chamamentos e compromissos, não permitiam que o simples encontro entre ela e o religioso ocorresse. Nestas situações trabalhosas tendemos a ser proteladores, talvez agarrados à esperança ilusória de que tudo possa ser resolvido pelo acaso. Mas foi desta maneira, exata, que nos chegou a solução. 

Já quase havíamos deixado aquela idosa cega e o seu desejo de receber a Hóstia. Esquecemos seu nome, seus propósitos, seus pedidos. Até que numa tarde, em outra cidade, eu estava no interior de uma grande igreja. Próximo de mim, mais uma única pessoa. Era uma moça que trazia um terço enrolado ao punho e aguardava num dos inúmeros bancos o momento, também, da confissão com um padre. Nesta cidade vizinha de mais de 35000 habitantes ela resolveu me ceder a vez, de certo por pensar que a minha distância de retorno era maior que a dela. Enquanto mantínhamos aquela espera curta, ela soube da minha caminhada como servo da Comunhão.  E, de repente, me fez um pedido. O pedido para visitar a sua avó na periferia da minha cidade, cidade que já a muitos anos não era mais a sua morada. Mas lá morava a sua vovó que desejava,  há tempos, receber em casa a Hóstia Eucarística. Antes que eu entrasse na sala onde me esperava o religioso, ela teve tempo de me informar que a sua querida velhinha era cega e não podia mais frequentar sozinha as missas.

Não pude guardar o nome daquela neta. Não acreditei que o destino pudesse ter me colocado junto a  aquela mulher de aspecto sofrido, jovem, que me cedeu a vez e me conectou, novamente, à idosa cega. Mas pude perceber, alguns minutos depois, que os anjos de Deus nos colocaram lá, dando continuidade à solicitação daqueles olhos que já não eram funcionais. 

Na tarde de hoje, com a ajuda de uma das suas filhas,  eu levei a senhora até a confissão. Ela vestia, de forma simples e alinhada, digna, um vestido azul. Tinha os cabelos grisalhos penteados e portava a alegria que não somos capazes de detalhar.

Logo, logo, entregarei-lhe a hóstia, e a Comunhão se completará. Logo, logo, levarei a ela o alimento que irá apurar-lhe a visão; a visão que muitos de nós não temos.