Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

sábado, 28 de maio de 2016

Histórias do sertão 8: Dona Calista

Suas mãos são bonitas, disse ela, você terá sorte. Eu nunca ouvi dela uma frase como aquela. Eu não esperava que aquela idosa que carrega quase um século de vida fosse exercitar seus nebulosos dons, visionários ou clarividentes, de maneira  que eu pudesse perceber. Mas a naturalidade que seus olhos miúdos externavam foi capaz de me deter, antes que eu saísse.

Dona Calista, a benzedeira de inúmeros vincos cravados em um rosto de expressão que não se define. Dona Calista com mãos que já foram firmes sobre a fronte de crianças sonolentas e adoentadas. Agora mantinha o lenço atado sobre a cabeça com fios sempre escondidos. Permanecia sentada na cadeira de rodas, tomava o sol já forte da manhã. Suas mãos são bonitas...



Dona Calista. Imagem: Cláudio Gontijo




Sua voz arrastada nasceu, ao que conta, aos pés da Serra do Cabral. Ali viveu seus primeiros anos de vida e continuou naquele grotão junto ao seu companheiro. Viveu para a lida, com os gravetos que carregou para alimentar o fogo, com a enxada atolada na terra fresca, com o machado, viveu também para as rezas fora de hora.

E antes que a velhice e a enfermidade viesse,  arrumou a mudança para a cidade. É bem certo que todos os apuros suportados e aliviados com os inúmeros terços recitados, de pé ou de joelhos depositados no chão batido, produziram nela a fama que se espalhou. Na cidade de minguados recursos e muitos nascimentos, planejados ou não, suas mãos, hoje fracas e trêmulas, afagaram em orações e boa vontade aquelas crianças. Curando, vivendo e sonhando pouco, ela foi abençoando, com as suas repetidas preces. Meninos e meninas, homens feitos, mulheres trabalhadeiras, idosos de idade avançada, crentes, corações cheios de dúvida, e todos os que experimentavam ouvir as suas palavras ajoelhavam-se, inclinavam a cabeça para receber suas ofertas de benzeção.

Com os anos que se foram as estrofes das rezas foram ficando partidas, as pernas já não podiam permanecer firmes sustentando o pequeno corpo. As Ave Marias foram diminuindo. Até que ela entendeu que seu ofício maior e mais afamado ia diluindo-se com as dores no corpo.

Agora eu a encontro, sentada próxima a cozinha, às vezes deitada com algum clamor e gemido. A cada semana ela me recebe, alegre, com queixas que nem sempre entendo.

Nestes dias tenho notado suas mãos fazendo sinais em direção ao seu bisneto de poucos meses. Certamente são gestos de boa vontade, certamente são esboços de fé.

Naquela tarde eu abri as duas mãos diante dela e indaguei se havia algo mais, se a miudeza do seu olhar não era capaz de enxergar mais alguma coisa. Ela apenas repetiu que as linhas da minha mão eram bonitas. E sorriu com aquele seu sorriso escondido.

4 comentários:

Celle disse...

quanto mais nos aproximamos da terra, do simples do humilde, mais nos tornamos humanos e melhores!

Cláudio José Gontijo disse...

O que posso dizer, minha amiga, é que vou juntando toda esta humildade e guardando de maneira a utiliza-la sempre em minhas reflexões. A mudança que teremos que fazer neste caminho da simplicidade é trabalhosa, muito trabalhosa.

Unknown disse...

Fantástico!

Cláudio José Gontijo disse...

Obrigado Liza. Um abraço.