Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

domingo, 11 de dezembro de 2016

Muito pobres



Os caminhos que levam à serenidade não costumam ser serenos. São confusos e cheios de provações, experimentos falhos. Muitos são ilusórios. As jornadas são longas, muito longas, e nos parecem intermináveis. 

Muitos em suas situações tortuosas e viciadas, amaldiçoados, são alguns dos que experimentaram a paz. Durante os seus erros, à margem da existência comum, mantiveram a mansidão e enxergaram a suas imperfeições com paciência. Foi preciso caridade, com os que tropeçavam e consigo próprios.

Aqueles que se contentaram com os seus pertences, mesmo pobres, puderam carrega-los sem qualquer dúvida. Não tiveram a vergonha de expor vestimentas e sonhos simples. Não tiveram medo de mostrar sinceridade, mesmo sob teimosia e descrença.

Após diversas tormentas, sob o solo da miséria, ainda se manteve a esperança.  Muitas formas de preconceitos caíram durante a provação, muitas formas de amizade nasceram do sofrimento, muitas vasilhas de alimento chegaram durante a fome.












domingo, 4 de dezembro de 2016

José Ribamar Ferreira, Ferreira Gullar







"A poesia é a tristeza transformada em alegria". O autor desta frase, José Ribamar Ferreira, partiu hoje, aos 86 anos. Não há como descrever a sua genialidade literária.

Algumas poucas frases deste poema o descrevem, ainda que de forma incompleta:

"Uma parte de mim 
almoça e janta;
outra parte 
se espanta.

Uma parte de mim 
é permanente;
outra parte 
se sabe de repente".

Do Poema: Traduzir-se / Ferreira Gullar

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Grato


Agradeço por continuar a minha jornada. Então, recoloco esta reflexão:


"Já não basta agradecer.
Enquanto envelheço vou lembrar.
Dos irmãos que nunca me serão subtraídos,
da mãe que desejamos guardar longe do tempo e da morte.
Lembro do que ganhei, do que sonhei, do que não fiz, do que nunca serei,do que tenho feito, do que ainda terminarei.
Esqueço o que adiei.
Lembro e rezo, rezo e adormeço.
Acordo e lembro.
Lembro e vivo.
Lembro de quase tudo sem ter que descrever em sofreguidão.
Dos córregos, do cheiro de esterco e das roseiras,
da escuridão silenciosa e ampla na varanda da minha infância,
de onde se tinha poucas imagens e escassos recursos.
Lembro de que nem tinha pressa,
nem conhecimento da urgência no grande relógio ao fim do corredor.
Lembro do que me foi ofertado,
lembro que, então, sorri e segui.
Mas ainda assim dou graças por Ana e Cláudia,
dou graças pelo que ainda posso enxergar.
Dou graças por ter como servir,
dou graças por ter partilhado com os humildes.
Dou graças por ter sobrevivido à caridade dos que se fecham a qualquer aceno.
Dou graças porque pude ver muitos pássaros, flores e rios.
Dou graças pelos que me são necessários e pelos que se acham insubstituíveis.
Dou graças pela fé, pela esperança, pela Graça que ainda teremos".

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Árvores


Imagem: Cláudio Gontijo




Alguns minutos de reflexão em meio ao arvoredo que se deixa movimentar pelo vento, nos daria algumas poucas certezas, mas suficientes para muitas das nossas aflições. Uma daquelas copas, cujas folhas crescem em profusão, já foi um minúsculo e imperceptível grão, uma semente. De forma lenta, muito lenta, ao longo de muitos anos, a sua transformação, após germinar do solo, foi se realizando sem que quase ninguém percebesse. Quando pensamos em muitos anos, melhor seria imaginar que foram milhares de dias e dias, períodos chuvosos e tempos de seca implacável. Esta realização vegetal, porém, nunca deixou de ser progressiva.

Quem já teve a chance e a felicidade de plantar uma árvore, observou como o tempo paciente e sábio, foi edificando o tronco, galhos, folhas. Observou que o tempo trouxe flores. Que o tempo trouxe exuberância, sombra para um dia de sol forte. Se foi capaz de confrontar aquela árvore formada com a imagem, guardada em alguma foto ou banco de dados de um computador, com o minúsculo arbusto que ali já se manteve, pode se surpreender com a força construtiva do tempo.

Nada grandioso e essencial à nossa existência se constrói de maneira imediatista, do dia para a noite, ao sabor do capricho que não deseja a espera. O tempo da criação é imperceptível aos que correm de forma vertiginosa. Há algo de sagrado na espera, há algo de abençoado na simplicidade com a qual a natureza evolui. Evoluímos também assim. Juntando os pequenos grãos, preparando sabiamente a terra, esperando pela vida que germina, em nossos filhos, em nossos projetos, em nossas orações, em nossa fé.

Ah, se soubéssemos com exatidão a fórmula que permite edificar com paciência, seríamos muito mais cheios de gratidão e certeza. Se soubéssemos toda a verdade do que o tempo pode nos trazer, com seu silêncio e leveza, pararíamos mais para dar graças, para glorificar. Se esperássemos com mais calma pelas noites de ventos amenos, vazias de sons, perfumadas pelas flores, teríamos o sono mais reparador. Teríamos mais certeza de que tudo aquilo que plantamos por escolhas sábias e altruístas, um dia estampará diante de nós a beleza de uma grande e forte árvore, em sua majestosa trajetória de vida adulta.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Véu negro




Quando o véu negro cai sobre o nosso olhar,
e nem sabemos,
se vamos experimentar a chuva,
ou ter a grama sob nossos pés,
ou se poderemos continuar,
iremos rir de nós mesmos,
da jornada confusa,
difusa,
quando parecemos pequeninos,
meninos,
no meio do caminho.


E então,
saberemos da sede,
que nem notamos,
e que carregamos,
quando vivemos,
abraçamos,
tocamos.

Respiramos.
Ávidos,
na busca que construímos,
sem bússola

sem fim,
pela  vasta,
bela,

existência,
assim.






sábado, 15 de outubro de 2016

Cruz











Aqueles que riscam a terra, arrastam a sua cruz.
Buscam ser livres,
da doença,
da mágoa,
da assombrosa maldade,
dos desafetos de gosto amargo e rançoso,
das fragilidades que separaram por orgulho.
Grotesco poste em ombros dormentes e prontos para a agonia,
onde agora não se tem qualquer alento,
onde a qualquer momento,
virá a dor que dilacera.
Ainda assim, antes da tortura,
repudiam a dúvida,
a mentira,
a miséria,
porque desejam, em meio ao sangue e água,
a liberdade que redime.
Antes de todo o sofrimento,
livraram-se de imagens que os cortaria em ilusão,
que levaria à escravidão.
Ninguém carregará por eles a madeira tosca e seca,
ninguém limpará suas feridas,
ninguém sentirá a mesma agonia,
ninguém delimitará o caminho traçado pelo rastro sinuoso,
ninguém gemerá por eles.
Só esta jornada é que os elevará,
e conduzirá à leveza,
mostrando o que nunca seria revelado,
transformando o que foi abençoado.





sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Nobreza





Imagem: Cláudio Gontijo




A hipocrisia mascara os sentimentos mais nobres. Eles são como vegetais que necessitam ser cuidados com gotas diárias de componentes líquidos. Para alimenta-los teremos que utilizar de cuidadosa nutrição cujo conteúdo não poderá deixar de ser a verdade. Pacientemente, então, vamos deixando pela longa jornada aquilo que não nos é essencial, optando pela humildade e mansidão. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Embrulhos do tempo

Em fevereiro do ano passado escrevi este poema, ou uma reflexão, como puder ser aceito. 



"Entre aqueles que vão percorrendo o caminho,
alguns transportam, embrulhado em papel pardo, as suas mágoas remoídas e encardidas.
São rancores que não puderam ser deglutidos, digeridos, diluídos.
Então são mascados, revividos, repassados, em pequenos pensamentos, em minúsculos acontecimentos, de espíritos miseráveis.
Estes grossos pacotes estão amarrados em barbantes de pouca fé e de descrença.
Ainda que não haja, de pronto, o maior dos remédios,
uma receita preciosa também não virá.
E para que estes pacotes não permaneçam lacrados,
o tempo, e só o tempo, vai desgastando-os,
desbotando o seu conteúdo.
Enganos, equívocos, vão sendo escavados,
como em duras e teimosas pedras.
Até que se percam ao longo da estrada.
Alguns destes corações irão livres,
outros permanecerão quase inertes e embrutecidos".

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Não há vencedores e vencidos











Muitos são os que se dizem aliviados. O embate contundente que se observa nas tribunas, porém, seguramente não é o que se traduz nos bastidores. A ética que julgamos existir, não existe. No poder político não há vencedores e vencidos. Existem, sim, acordos. Acordos que permitem sorrisos e choros fictícios. Revoltas sem nexo. 


Todos os discursos inflamados e emocionados direcionam-se muito mais aos eleitores do que aos ocupantes de uma seção. As falas bem calculadas só se desesperam, verdadeiramente, com um futuro que não lhes garantam todos os luxos e mimos que se atrelam aos altos salários. A real preocupação só se mostra com a chegada do fim de um mandato, com o anonimato, com a escassez de votos, com o abandono, com o desligamento efetivo das salas requintadas.


Não existem adversários ferrenhos, não há mais ideologias que possam sobreviver ao egoísmo e ao poder monetário. A ideologia esta faccionada nos lares, onde se configuram, ainda, pensamentos de esquerda e direita.


Vestimentas caras e rostos tranquilos não podem simular, aos olhos atentos, a indignação. O ódio é descartável, o apresso é falso.


As pessoas comuns, assalariadas, são aquelas que irão vivenciar uma realidade distante das reuniões acaloradas, cheias de riso ou lágrimas. Serão aquelas que continuarão adquirindo seus bens em inúmeras parcelas; considerando cortes a serem feitos, cada vez mais, diante dos  benefícios básicos e essenciais. Estes, de fato, não receberão qualquer bem de valor, qualquer momento de serenidade e alívio, em uma militância inflamada. Ainda que militem com suas bandeiras surradas e mal feitas, ainda que gritem nas avenidas.










quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Guerra

Não há qualquer razão na guerra. A guerra divide, fragiliza e aniquila.

"A pessoa que não está em paz consigo mesma, será uma pessoa em guerra com o mundo inteiro". Mahatma Gandhi


Uma criança síria após um bombardeio. Imagem web

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Voz











A voz do povo é a voz de Deus. Inúmeras vezes esta frase chegou aos nossos ouvidos, inúmeras vezes nós a repetimos. Qual de nós ouviria a voz de Deus? Quanto maior for o consenso, mais verdadeiro ele será. Ainda assim é possível concluir que a maioria pode ser enganada. É possível ludibriar quando se lida com a falta de esclarecimento, com a carência de informações, com a miséria física.

Assim caminhamos para as eleições municipais. Mergulhados em dúvidas, desconfiados, apreensivos em relação à política partidária. A incerteza quer nos afastar do nosso compromisso maior, o voto. Temos esperança, sentimos repulsa, temos entusiasmo, sentimos dúvida. Mas é provável que outra decisão comum, coerente pelas necessidades de toda natureza, seja a de que nunca precisamos tanto da prosperidade social, cultural e econômica. Nunca necessitamos tanto de melhores escolas públicas, nunca necessitamos tanto de postos de saúde mais equipados, nunca necessitamos tanto de melhores vencimentos para os que tem menos. Precisamos muito de preços competitivos, de lazer sadio. Precisamos da infra estrutura que poderia chamar a indústria, pequena que fosse, para gerar empregos, renda. Que poderia diminuir as diferenças, direcionando mais benefícios. 

Não sabemos qual é a tonalidade da voz de Deus. Mas temos a certeza de que os candidatos aumentaram. Chegaram em número maior, trouxeram múltiplos projetos. Muitos são jovens, possuem idéias renovadas, muitos trazem a experiência que veio com o avanço da idade. O volume de acordos e promessas realizados nos comícios ou nas salas domésticas ainda é o mesmo de muitos anos já passados. Muitos sorrisos continuam carentes de sinceridade, muitos cumprimentos chegam com a necessidade de mais calor.

Talvez nunca chegaremos ao timbre da voz de Deus. Mas a incerteza não pode nos afastar do nosso compromisso maior. É necessário que busquemos uma junção de ideias. É necessário que tenhamos o desejo de ouvir e lidar com a verdade. Porque embora não possamos ouvir essa voz, podemos nos firmar no que sentimos dela. Assim, como sonhadores ou não, como cidadãos presentes ou até mesmo desertores que um dia fomos, com todas as perguntas sem respostas, com as tratativas sem nexo, não podemos adiar o toque que daremos nas máquinas eletrônicas. Se cometermos o erro de justificar a nossa escolha em outras salas eleitorais, estranhas, se efetuarmos a nossa escolha de maneira relapsa, sem qualquer responsabilidade, estaremos nos distanciando de nós mesmos. Estaremos fragmentando qualquer tipo de voz.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Cultivando










Que nós tenhamos a coragem necessária para estampar as nossas crenças,
que afagam e resgatam, em fé pura.
Que busquemos a leveza e a tolerância, sementes simples e únicas.
Que não nos envergonhemos das nossas pequenas posses;
antes, que sejamos mais felizes pelo que trazemos de boa vontade.
Que sejamos capazes de perdoar, de reconhecer a nossa impaciência, de valorizar qualquer afazer.
Que busquemos a fidelidade, ainda que a jornada seja confusa e observemos a ingratidão.
Seguiremos na direção da paz.
O amor será sempre o nosso sentimento mais claro,
como a luz que nos conforta a cada dia,
como as nossas mãos que exalam o calor da amizade,
vívidas pela emoção da graça.
Cultivaremos para sermos fecundos e pela esperança de um tempo justo,
por frutos que alimentem,
afastando a miséria,
a dúvida,
a indiferença,
a vaidade.
Que a colheita nunca deixe de ser repartida,
e que todos possam experimentar mais alegria,
libertos, pelo riso e pela oração.





sábado, 16 de julho de 2016

Imagens: Pássaros II

Os pássaros espalham-se por quase toda a superfície terrestre. Um dos fatores que auxiliam a sobrevivência destas espécies é a sua capacidade de manter a temperatura corporal estável, homeotermia. Outro fator importante é que estes animais possuem o corpo revestido por camadas de estruturas complexas, as penas. Este revestimento externo os auxilia, na maioria das vezes, a manter a impermeabilidade da pele à água.

A possibilidade do voo permite que os pássaros migrem de uma região para outra, sempre que encontram adversidades climáticas, escassez de alimento e o perigo da proximidade de predadores. Este é, também, uns dos fatores que lhes fornecem notável poder de adaptação aos diversos biomas da terra.

A reprodução frequente dos pássaros, em média três vezes ao ano, o curto período de incubação dos ovos e o rápido desenvolvimento dos filhotes são ainda fatores que produzem a enorme multiplicidade destes seres vivos no planeta.





















































Lavadeira mascarada (Fluvicola nengeta), Suiriri-cavaleiro (Machetornis rixosa), Falcão-quiriquiri (Falco sparverius), Alma-de-gato (Piaya cayana), João-de-barro (Furnarius rufus), Canário-da-terra (Sicalis flaveola), Pássaro-preto (Gnorimopsar chopi), Garça-branca-grande (Ardea alba).  Imagens: Cláudio Gontijo

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Aprendizes





Imagem: Cláudio Gontijo





Que a caminhada não nos envergonhe, 
e a caridade nos leve à discrição.
Que a fé nos mostre a coragem, 
e o medo não nos paralise. 
Porque longa é a jornada,
e o aprendizado inadiável.
Inadiável também é o sofrimento,
mas a paz nos chamará.
Não estaremos sós,
não seremos fragilizados pelo acaso,
não teremos a dor constante,
não viveremos em vão.

sábado, 25 de junho de 2016

Sob medida





Imagem: Cláudio Gontijo





Muitos são os que  não acalentam mais o que sonharam durante um tempo distante.
A humildade um dia construída, hoje se espalha pelo chão em ruínas de constrangimento.
Perderam seus amigos de infância e a infância que carregavam.
Perderam a paz que os conduzia em risos e espontaneidade.
Perderam as referências que os possibilitavam ser aquilo que realmente eram.
Os caminhos deixaram de ser singelos e naturais,
e agora tem muitas manchas de superficialidade.
Tornaram-se aplainados, previsíveis, marcados por estranhas ferramentas tecnológicas.
E não oferecem mais o benefício da simplicidade, das formas cruas e verdadeiras.
Conquistou-se mais benefícios e benesses, facilidades, rapidez.
Mas o que parecia prático, deixou menor o tempo em que se caminha ao ar livre.
Aumentaram-se as distâncias,
das manhãs de sol,
das cores das pétalas.
Agora muitas aspirações materiais são sanadas, mas a anestesia chega ao final do dia.
Muitos já não podem contar com os que já abraçaram,
agora só visualizam o futuro que se estampa nas quadros eletrônicos.
Muitos não são mais os mesmos,
e nem querem ser o que de fato são.
As profecias que entram em suas salas informam os padrões,
da próxima estação,
da nova marca,
do que será reformado,
do que puder ser encomendado.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Tempo

Esta é a melhor definição de tempo.















O Tempo  (por Mário Quintana)

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. 
Quando se vê, já são seis horas! 
Quando se vê, já é sexta-feira! 
Quando se vê, já é natal... 
Quando se vê, já terminou o ano... 
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. 
Quando se vê passaram 50 anos! 
Agora é tarde demais para ser reprovado... 
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. 
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas... 
Seguraria o amor que está à minha frente e diria que eu o amo... 
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. 
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. 

A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

sábado, 28 de maio de 2016

Histórias do sertão 8: Dona Calista

Suas mãos são bonitas, disse ela, você terá sorte. Eu nunca ouvi dela uma frase como aquela. Eu não esperava que aquela idosa que carrega quase um século de vida fosse exercitar seus nebulosos dons, visionários ou clarividentes, de maneira  que eu pudesse perceber. Mas a naturalidade que seus olhos miúdos externavam foi capaz de me deter, antes que eu saísse.

Dona Calista, a benzedeira de inúmeros vincos cravados em um rosto de expressão que não se define. Dona Calista com mãos que já foram firmes sobre a fronte de crianças sonolentas e adoentadas. Agora mantinha o lenço atado sobre a cabeça com fios sempre escondidos. Permanecia sentada na cadeira de rodas, tomava o sol já forte da manhã. Suas mãos são bonitas...



Dona Calista. Imagem: Cláudio Gontijo




Sua voz arrastada nasceu, ao que conta, aos pés da Serra do Cabral. Ali viveu seus primeiros anos de vida e continuou naquele grotão junto ao seu companheiro. Viveu para a lida, com os gravetos que carregou para alimentar o fogo, com a enxada atolada na terra fresca, com o machado, viveu também para as rezas fora de hora.

E antes que a velhice e a enfermidade viesse,  arrumou a mudança para a cidade. É bem certo que todos os apuros suportados e aliviados com os inúmeros terços recitados, de pé ou de joelhos depositados no chão batido, produziram nela a fama que se espalhou. Na cidade de minguados recursos e muitos nascimentos, planejados ou não, suas mãos, hoje fracas e trêmulas, afagaram em orações e boa vontade aquelas crianças. Curando, vivendo e sonhando pouco, ela foi abençoando, com as suas repetidas preces. Meninos e meninas, homens feitos, mulheres trabalhadeiras, idosos de idade avançada, crentes, corações cheios de dúvida, e todos os que experimentavam ouvir as suas palavras ajoelhavam-se, inclinavam a cabeça para receber suas ofertas de benzeção.

Com os anos que se foram as estrofes das rezas foram ficando partidas, as pernas já não podiam permanecer firmes sustentando o pequeno corpo. As Ave Marias foram diminuindo. Até que ela entendeu que seu ofício maior e mais afamado ia diluindo-se com as dores no corpo.

Agora eu a encontro, sentada próxima a cozinha, às vezes deitada com algum clamor e gemido. A cada semana ela me recebe, alegre, com queixas que nem sempre entendo.

Nestes dias tenho notado suas mãos fazendo sinais em direção ao seu bisneto de poucos meses. Certamente são gestos de boa vontade, certamente são esboços de fé.

Naquela tarde eu abri as duas mãos diante dela e indaguei se havia algo mais, se a miudeza do seu olhar não era capaz de enxergar mais alguma coisa. Ela apenas repetiu que as linhas da minha mão eram bonitas. E sorriu com aquele seu sorriso escondido.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Passarinhando

Mário Quintana, poeta nascido no Rio Grande do Sul, escrevia versos mágicos que encantavam pela extrema espontaneidade e leveza. Embora genial, nunca fez parte da Academia Brasileira de Letras. Após uma terceira indicação, sem sucesso, ele, de forma bem humorada e sarcástica, escreveu ao final da década de 70.

Poeminho do Contra

"Todos esses que aí estão 
atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho".

Imagem: Cláudio Gontijo

terça-feira, 10 de maio de 2016

Simplicidade







Em silêncio cada passo é simplicidade.
Como flores minúsculas,
de cores vivas,
que ontem não notamos no caminho.

Em silêncio tudo é palpável,
a mágoa que um dia cultivamos,
a ternura que hoje acalentamos,
como sementes que desejamos germinar,
regando em água e amor teimoso,
anônimos e andarilhos que somos,
plenos que ainda seremos.












Imagem e texto: Cláudio Gontijo






quarta-feira, 4 de maio de 2016

A humildade por Cora Coralina





Fragmentos do poema "Humildade"


"Senhor, fazei com que eu aceite 
minha pobreza tal como sempre foi. 

Que não sinta o que não tenho. 
Não lamente o que podia ter 
e se perdeu por caminhos errados 
e nunca mais voltou. 

Dai, Senhor, que minha humildade 
seja como a chuva desejada 
caindo mansa, 
longa noite escura 
numa terra sedenta 
e num telhado velho". 

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Alívio

Não há muito o que temer.
Porque a noite, ora,
a noite é apenas um sopro,
e o dia amanhece como um alento.
O pesar é só um lapso.
O riso virá, sempre, em afago,
e a esperança numa eterna cor.







Texto e imagem: Cláudio Gontijo

domingo, 20 de março de 2016

Caminhada



Imagem: Cláudio Gontijo


Ainda que não encontremos a paz nas facetas ilusórias da nossa existência, que nos conduzem a escolhas escravizantes, teremos a chance, pela misericordiosa Criação, de nos redimir. A redenção é parte inadiável dos projetos de Deus para a jornada de todos. 

Enquanto vamos caminhando, vamos nos deparando com os sinais da boa vontade. E mesmo que estejamos apressados, buscando a materialidade como substituto para o vazio que nos incomoda, em determinado momento iremos nos deparar com a delicadeza e o carinho que a plenitude nos oferece. Em silêncio vai nos sendo ofertado a sensibilidade da alma. Assim teremos a oportunidade de experimentar toda a real beleza que orbita em torno de nós.

Tudo o que nos envenena e nos fragiliza, vai sendo diluído por nossa própria vontade. Na simplicidade absoluta de uma caminhada longa e trabalhosa, onde muitas vezes nos sentimos desamparados, onde muitas vezes nos sentimos incapacitados, vamos sendo pouco a pouco alimentados pela enorme presença de Deus. O seu amor nos resgatará para um momento de profunda intimidade com a verdade que existe em nós. Assim, então, viveremos a paz.


"Dia virá em que nalguma volta do teu caminho hás de encontrar Deus".

Érico Veríssimo

quarta-feira, 9 de março de 2016

Recolher-se


Imagem: Cláudio Gontijo



Diante de uma existência que nos incomoda com o barulho tecnológico e ansioso, ainda não perdemos o direito de silenciar. É no silêncio que se origina a reflexão, a oração, a paz. Quando nos recolhemos vamos em direção ao que necessitamos, quando nos recolhemos vamos ao que nós é essencial. Jesus buscava lugares silenciosos, retirava-se para rezar; ele o fazia com frequência, como está retratado:

"Ele retirou-se para o deserto para orar". Lucas 5:16

"Jesus levantou-se, saiu da casa e retirou-se para um lugar deserto, onde ficou orando". Marcos 1:35

"Feito isso, subiu à montanha para orar na solidão". Mateus 14:23

"Percebendo, então, Jesus, que estavam prestes a vir e levá-lo à força para o proclamarem  rei, retirou-se novamente, sozinho, para o monte". João 6:15

Hoje refleti sobre a importância do silêncio. Curiosamente, um pouco mais tarde, dentro de um hospital, escrito sob uma pedra próxima a um jardim, encontrei:

"É no silêncio que germinam todas as coisas".




Imagem: Cláudio Gontijo

domingo, 6 de março de 2016

Respostas


Diante dos sinais e rugas,
de tantas evidências pardas ou de cores vivas,
incômodas,
diante de tanta vida e experimentos,
ferimentos profundos,
cicatrizes, sangramentos profusos,
nunca pudemos permanecer calados.
Se nos expomos em carne viva,
sem silêncio ou privacidade,
por que responder a tantas perguntas ?
Ainda que não pudéssemos visualizar nosso próprio horizonte;
por quê a necessidade de explicarmos, sempre, sem termos e limites,
em detalhes de remendos e frustrações ?
Mesmo com todas as dores e risos,
de uma existência rica e múltipla,
se vamos justificar a cada instante,
como responderemos a nós mesmos ?


domingo, 28 de fevereiro de 2016

O sapo-boi, sapo-cururu, o comedor de insetos

Os anuros são grupos de anfíbios que não possuem calda. Rãs, pererecas, sapos, são os principais exemplos desta classe. Um sapo encontrado também no habitat do cerrado, vivendo geralmente próximo à margem de lagoas, açudes, rios, riachos, é o chamado sapo boi (Rhinella diptycha). Seu aspecto costuma ser repugnante pela pele enrugada, devido às inúmeras glândulas espalhadas. Algumas delas localizadas atrás dos olhos e nas patas traseiras, são denominadas, respectivamente, paratóides e paracnêmicas,  secretando substâncias tóxicas, de aspecto leitoso. A espécie só é capaz de externar estas toxinas quando o seu corpo é comprimido ou pressionado. Substâncias venenosas, elas causam desde reações alérgicas na pele até efeitos neurotóxicos se ingeridos.


A espécie Rhinella diptycha e sua pele enrugada, cheia de glândulas. Visíveis as glândulas paractenóides (bolsas próximas aos olhos). Imagem: Cláudio Gontijo



Mas os representantes desta espécie, e de um modo geral de outras espécies deste gênero, não apresentam qualquer característica agressiva. A toxina é utilizada como meio de defesa contra outros animais como répteis, aves, e alguns tipos de mamíferos. Estes exemplares são gulosos comedores de insetos, saindo à noite para capturar grande quantidade deste alimento. Contribuindo, assim, para o equilíbrio de populações de insetos na cadeia alimentar. 


A glândula paratoide e seus inúmeros poros. Imagem: Cláudio Gontijo



Ao final da região dorsal, localiza-se a cloaca, abertura que libera óvulos e espermatozoides, por fêmeas e machos. Imagem: Cláudio Gontijo.


No período da reprodução o macho "abraça" (amplexo) e pressiona o abdome da fêmea enquanto ela deposita os ovos no meio aquático. Em seguida ele libera os espermatozoides, capazes de fecundar ovos. Todo o processo pode demorar mais de 10 horas. A fecundação é denominada externa. Os embriões darão origem a formas não adultas com calda (girinos) que passarão por metamorfoses (sempre em meio aquático) até chegar a forma adulta.


As patas impulsionam os indivíduos para uma locomoção que os distância quilômetros dos meios aquáticos. Imagem: Cláudio Gontijo





Ovos no meio aquático envolvidos por material gelatinoso. Imagem web





Apos a fecundação dos ovos, eles darão origem aos girinos (formas não adultas destes anfíbios). Imagem web





sábado, 20 de fevereiro de 2016

O galo-da-campina

Nos meses mais úmidos do verão é possível observar na mata ciliar do Rio das Velhas, norte de Minas, caminhando ou saltitando pela vegetação de gramíneas, um belo pássaro com a cabeça e porção inicial do peito (garganta) cobertas com penas vermelhas. As regiões do abdômen e restante do peito possuem a cor branca, em contraste com cor escura/acinzentada das asas e da porção dorsal. Ele é o cardeal-do-nordeste (Paroaria dominicana), também conhecido como galo-da-campina. Esta espécie habita a vegetação semi-árida do nordeste e as matas ciliares. Quando a imagem foi feita o pássaro percorria, arisco, a vegetação rasteira dos gramados para buscar o seu alimento predileto, as sementes nos pedúnculos das gramíneas. Nestes períodos, onde ocorre o seu acasalamento e reprodução, alimentam-se também de boa quantidade de insetos e larvas.


O cardeal-do-nordeste e a sua bela plumagem. Imagem: Cláudio Gontijo



Em ciclos regulares de chuvas a sua reprodução pode ocorrer. em média, três vezes ao ano. Nos ninhos, em formato de tigela, construídos com ramos e capim, secos, entrelaçados, são depositados até três ovos. Em duas semanas os ovos eclodem, após mais quinze ou vinte dias estes filhotes já são capazes de voar.


O ninho de uma das várias espécies de cardeais. Imagem web




Não há dimorfismo sexual, ou seja, diferenças marcantes entre o macho e a fêmea. No período reprodutivo o casal permanece sempre juntos. O macho determinará o território para que a fêmea construa juntamente com ele, o ninho e realize a postura dos ovos.