Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

terça-feira, 30 de junho de 2015

Histórias do sertão 6: Raimundo Profeta










Enquanto caminhava, bem cedo, ao lado da manhã fria destes dias finais de junho, os passos se apressavam para que aquela atividade tivesse algum valor como exercício físico, aeróbico, ou seja lá o que podem inventar e chamar. É curioso como temos tempo para as metas que a ilusão vem entregar à porta de casa e que ainda planejamos, pensamos, retocamos, remendamos e requentamos. Não possuímos são os minutos necessários ao que pode ser cadenciado e nos é verdadeiramente essencial. Não que eu esteja livre de qualquer futilidade, mas tenho andado sem relógio nesta rua de nenhum tráfico que seja; nem uma carroça, nem um automóvel, um jumento, um velocípede. Como de costume, não havia muito movimento ali mesmo, naquela rua comprida, larga, que  acompanhava os trilhos de aço da ferrovia, que mostrava as ruínas de uma antiga estação de trens, que tinha bem conservado o seu calçamento de blocos de concreto. E tinha também muitas árvores, Ipês Roxos, por onde vinha o sol através do espaço que se fazia entre a folhagem.

Então veio como que deslizando pelos blocos da avenida o Raimundo Profeta e sua bicicleta muito bem conservada, limpa, de pneus novos e pintura verde. De uma forma quase silenciosa, a sua pessoa se aproximou e a fala quase que nem rompia os poucos ruídos  que iam conosco ao longo daquelas primeiras horas do dia. Ele fez a saudação com a forma contida que estampava ao longo de todos os anos que eu o conheci. A figura de roupas gastas e limpas, as pedaladas cautelosas, chinelos de dedo, o rosto de expressão comum, compunham aquele perfil. Provavelmente eu o avistei muitas e muitas vezes pelos cantos desta minúscula cidade. Mas era a portaria do pequeno hospital o seu lugar. Lá era possível encontrá-lo repetidas vezes, no turno da noite.

Ele segurava o guidão do veículo e vinha falando sobre o que andava fazendo. O discurso mais prolongado só veio diante da minha curiosidade, embora ele não fosse tímido ou econômico nas palavras. O que me parecia era que tinha destino certo, embora não impusesse mais velocidade no seu trajeto. Contou que a sua aposentadoria estava próxima, que já se tinham contados e anotados 33 anos. Com o acúmulo de férias não aproveitadas, folgas e adjacências, ele estaria longe daquela portaria já bem no início de 2016. Disse-me também que provavelmente era um dos mais antigos funcionários da prefeitura, ainda em atividade. Apontou o José das Pimentas como o mais antigo. Afirmou aliviado e muito decidido que foi muito proveitoso que tivesse tido a paciência necessária para permanecer estes anos todos, saltando de setor a setor nos galhos da administração pública. Todos os anos de contribuição previdenciária garantiriam a ele a justa pausa, o descanso calculado, que agora estava nitidamente estampado em seu olhar conclusivo.

A velocidade da sua trajetória diminuiu ainda mais. Com a mesma tranquilidade ele ainda me deixou que tinha mesmo o prazer naquele encontro e entrou no portão que dava acesso ao órgão de tratamento e fornecimento de água. O que faria ali ? Talvez fosse quitar alguma conta em atraso. Não o avistei mais, e nem a bicicleta.

De certa forma, admirei e até invejei aquele momento particular do amigo. A forma simplória e peculiar com que ele aguardava a sua parada definitiva. Não o desligamento oficial do seu labor público, mas a leveza estampada naquelas horas de sol ainda fraco. A certeza adquirida ao longo de todos os anos em que viveu em meio à simplicidade. Vou anotar que adquirimos até magoas e revoltas sem fim nem começo, mas, muitas vezes, pouca certeza. Valorizamos em sentido diminutivo aquilo que temos como tarefas. Até repudiamos a profissão, o ofício, sobretudo nas horas tempestuosas e tediosas, nas abençoadas segundas feiras.

Raimundo construiu seus bons valores quase como um anônimo ou imperceptível para aqueles que se achavam mais indispensáveis e bem aparentados. É bem realidade que este funcionário teve seus inúmeros entraves, teve suas diversas manhãs de pouco ânimo, tomou sol, sim, também tomou sol em múltiplas manhãs juninas, após o turno da noite. E é de se registrar que ele sempre pode iniciar a primavera que vinha amenizar a sua jornada de ferro, após um inverno nem sempre muito familiar. Pareceu-me bem claro, como o dia que ali nos tocava. Do contrário não estaria naquela rua para me noticiar a aposentadoria. O certo de todo este resumo, certo mesmo, é que ali, em meio ao pouco fluxo da Rua Expedicionários, passou por mim um homem, por assim dizer, com o sorriso que não se nota de pronto. O sorriso de alma limpa. Com a felicidade dos que se fazem cada vez mais vivos ao longo das manhãs de sol.  Sim, passou por mim o Raimundo Profeta, já a caminho de uma nova empreitada, de um novo tempo, de uma nova morada.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O mistério da Fé

Mesmo diante de toda evolução tecnológica, histórica, cultural que julgamos ter adquirido, nós ainda temos muitas verdades a serem aceitas. São verdades incômodas porque nos colocam diante daquilo que transcende a própria existência. Verdades múltiplas que se fundem a uma só; à grande e inquestionável natureza da Fé.








A Fé nos inquieta e nos coloca diante das nossas diferenças, das nossas imperfeições, das nossas fragilidades. Sem perceber podemos caminhar na trajetória inútil de dar à própria vida um sentido que a distancie daquilo que é Sagrado. Tudo porque a queremos acessível, fácil, nas prateleiras do nosso consumismo. Nós a queremos sob medida, sob encomenda para desejos pobres, aspirações doentias, vícios escravizantes. Queremos que ela nos proteja ou nos esconda daquilo que não desejamos estampar aos outros e, muitas vezes, nem a nós mesmos.











Não moldaremos a Fé em nenhum Templo, em nenhuma corrente religiosa, nem sob o aval de nenhum profeta. Simplesmente porque ela é germinada e nasce com a nossa própria face, ela está em nós, na nossa porção de verdade e amor. Ela é insondável porque representa a própria Criação em nós, representa Deus em nós mesmos. Mesmo que respeitemos e acreditemos em dogmas, ritualismos, princípios fundamentais religiosos, só teremos a experiência da Fé quando renunciarmos a tudo o que nos diminui, tudo o que nos distancia da partilha, que nos distancia da proximidade real com o outro que caminha conosco. Se renunciamos temos a possibilidade de enxergar toda a existência sob a ótica da inteligência superior que nos direciona à comunhão, caminharemos com a fecundidade necessária para a experiência de verdade e vida plena.










A tentativa de fragmentar a Fé, de subdividi-la em pedaços a serem oferecidos como presentes mentirosos e tendenciosos, nos enfraquece, nos distancia do amor de Deus. Mesmo que possamos vivenciar e testemunhar os seus benefícios, nos nunca poderemos decifrá-la enquanto seres humanos. Este mistério só nos será revelado quando formos chamados a viver uma só vida, na Eternidade.

Ainda assim a nossa existência terrena só terá sentido se nos dispusermos, em árdua jornada, a experimentarmos a grandiosidade da Fé.



Texto e imagens: Cláudio Gontijo


domingo, 14 de junho de 2015

Feridas





Que a esperança,
possa nos livrar do sentimento de rancor e amargura,
que chega à luz do dia para amortecer toda a fé e a alegria.
Todas estas feridas que experimentamos não vêm do que é Sagrado.
Nós é que as criamos com máscaras douradas de perfeição,
disfarçando nossas fragilidades com o que é artificial e imensurável.
Mesmo que escureça e ainda estejamos aqui, diante desta oração,
preferimos acender a luz,
a nos lamentarmos na escuridão.








Texto e imagem: Cláudio Gontijo/Lassance-MG