Imagens: Garça-branca-grande (Ardea alba), Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)/Cláudio Gontijo

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Histórias do sertão 7: A cegueira








A alguns meses buscávamos levar a Comunhão Eucarística a uma senhora de quase 90 anos. Simples e de fé cristã, moradora de uma casa de portão verde claro, na periferia, distante do centro da cidade. Os anos que se passaram diante dela, roubaram-lhe lentamente a visão. A cegueira aproximou-se e, subitamente, tirou-lhe o equilíbrio, deixou nela a insegurança demonstrada quando fui visitá-la. Seu semblante era de preocupação e dúvida diante de um estranho que ela não podia verificar a fisionomia.

Antes da minha chegada à sua casa, contávamos quase três meses de tentativas e desencontros junto a um sacerdote que desejava ter com ela uma pausa reconciliatória, em Sacramento de Confissão, antes que ela recebesse a Sagrada Comunhão.  Ele desejava receber sua confição. Mas o vasto  e difícil território do município, os inúmeros chamamentos e compromissos, não permitiam que o simples encontro entre ela e o religioso ocorresse. Nestas situações trabalhosas tendemos a ser proteladores, talvez agarrados à esperança ilusória de que tudo possa ser resolvido pelo acaso. Mas foi desta maneira, exata, que nos chegou a solução. 

Já quase havíamos deixado aquela idosa cega e o seu desejo de receber a Hóstia. Esquecemos seu nome, seus propósitos, seus pedidos. Até que numa tarde, em outra cidade, eu estava no interior de uma grande igreja. Próximo de mim, mais uma única pessoa. Era uma moça que trazia um terço enrolado ao punho e aguardava num dos inúmeros bancos o momento, também, da confissão com um padre. Nesta cidade vizinha de mais de 35000 habitantes ela resolveu me ceder a vez, de certo por pensar que a minha distância de retorno era maior que a dela. Enquanto mantínhamos aquela espera curta, ela soube da minha caminhada como servo da Comunhão.  E, de repente, me fez um pedido. O pedido para visitar a sua avó na periferia da minha cidade, cidade que já a muitos anos não era mais a sua morada. Mas lá morava a sua vovó que desejava,  há tempos, receber em casa a Hóstia Eucarística. Antes que eu entrasse na sala onde me esperava o religioso, ela teve tempo de me informar que a sua querida velhinha era cega e não podia mais frequentar sozinha as missas.

Não pude guardar o nome daquela neta. Não acreditei que o destino pudesse ter me colocado junto a  aquela mulher de aspecto sofrido, jovem, que me cedeu a vez e me conectou, novamente, à idosa cega. Mas pude perceber, alguns minutos depois, que os anjos de Deus nos colocaram lá, dando continuidade à solicitação daqueles olhos que já não eram funcionais. 

Na tarde de hoje, com a ajuda de uma das suas filhas,  eu levei a senhora até a confissão. Ela vestia, de forma simples e alinhada, digna, um vestido azul. Tinha os cabelos grisalhos penteados e portava a alegria que não somos capazes de detalhar.

Logo, logo, entregarei-lhe a hóstia, e a Comunhão se completará. Logo, logo, levarei a ela o alimento que irá apurar-lhe a visão; a visão que muitos de nós não temos.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Deus





Nós que somos instrumentos de um Ser fecundo e indescritível,
que desejamos a paz ainda que tenhamos sido impacientes,
que queremos proteger a quem amamos mas os ferimos repetidas vezes,
que sonhamos com a amizade eterna e esquecemos os amigos que moram ao lado,
devemos pedir, em oração, a constância.
Nós que avançamos, escolhendo o amor e a piedade,
a misericórdia e a caridade,
a esperança,
a fé,
a verdade e a justiça,
devemos clamar, então, por mais comunhão.
Estas preces nos libertam das ilusões que sorrateiramente roubam o riso.
Porque haveremos de nos deixar invadir, mais e mais,
pela Santidade construtora da boa vontade.
Assim, lentamente, vamos afastando toda a mágoa,
todo o medo,
toda forma de escravidão,
que produz miséria e ruína,
estagnação e descrença,
indiferença e amargura.
E após um longo percurso,
que nunca poderemos entender a extensão,
iremos nos purificar do que é falso,
do que um dia nos fragilizou,
para incorporarmos e vivermos,
definitivamente,
a presença de Deus.




quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Minúsculos





Ao fim do dia, agradecemos.
Ainda que em ousadia, pois pensamos não compor uma única parte do que nos foi ofertado.
Mas como podemos ver da forma necessária, diante da vastidão que se apresenta todos os dias?
Se não conhecemos os propósitos da Criação,
se nos tornamos cegos diante de uma existência infinita,
se não notamos a presença de muitos que desejaram nos facilitar o riso,
se nem sempre fomos serenos e verdadeiros,
desculpem-nos.
Mas, ainda assim, queremos agradecer.






Texto e imagem: Cláudio Gontijo

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Amigos eternos









Aqueles que um dia se indignaram,
foram verdadeiros em verdade de pesados fardos,
arrastados na escuridão onde ninguém está por perto.
Aqueles que foram flagelados pela indiferença alheia.
Aqueles que se aventuraram pelo trabalhoso caminho da solicitude,
solidários ainda que, diversas vezes, sem qualquer gratidão dos que foram acolhidos.
Nos momentos de uma existência dura e abafada pelos desejosos sem eixo, estes nossos amigos foram anônimos.
Mas foram felizes em uma caminhada de autoconhecimento e paz,
serenos pela fé sem tamanho,
silenciosos em longas jornadas de provações que até justificariam um gemido.
Alguns deles foram chamados, seguiram e nunca mais voltaram para junto de nós.
Eles partiram e determinadas homenagens só ocorreram em meio à comoção,
nos declarados e equivocados sentimentos de que tudo havia terminado, de maneira estúpida.
Mas, por tê-los conhecidos desde um tempo remoto e límpido em nossa memória,
transportaremos a sua presença, viva, junto às nossas crenças,
de que o fim desta vida não é o fim de uma rica existência.


domingo, 25 de outubro de 2015

Farinha-seca, uma bela espécie do sertão.

Há 13 anos atrás, quando adquirimos uma pequena porção de terras iniciadas à margem do Rio das Velhas, notava-se uma área de aproximadamente 12 mil metros quadrados, logo à frente da casa. Esta parte do terreno era utilizada para o plantio de milho. Uma área degradada pela prática de agricultura familiar, rudimentar, sem rotatividade de culturas que pudessem tornar a terra renovada em nutrientes.

A vegetação nativa deste local passou a crescer naturalmente e não foi utilizada para qualquer prática agrícola. Os trabalhadores rurais diaristas a roçavam periodicamente e foram orientados para que não cortassem as espécies de maior porte. Aos poucos foram surgindo, entre outras, as formas, ainda arbustivas, de uma espécie denominada Albizia niopoides, conhecida popularmente como Farinha-seca, natural deste ecossistema.




A área de cultivo transformou-se aos poucos (vegetação em período chuvoso). Imagem: Cláudio Gontijo/Lassance-MG






Esta espécie é pioneira, ou seja, origina-se ocupando áreas pobres em vegetação e em solos desgastados. Ela é comum no Centro-oeste, Sudeste (Minas e São Paulo) e norte do Estado do Paraná. Possui troncos de cor parda, escamosa, com copa pouco frondosa, mas que pode atingir altura de até 20 metros. As suas flores são esbranquiçadas, de tamanho reduzido, dispostas em várias inflorescências globosas que surgem, com os frutos, entre os meses de setembro a novembro. Os frutos são vagens que secam dispersando inúmeras e diminutas sementes de cor escura.




Flores esbranquiçadas da espécie. Imagem: ibflorestas.org.br








Vagens (frutos) secas e as sementes da Farinha-seca. Imagem: web






Aos poucos uma parte desta área foi transformando-se em uma pequena capoeira com várias espécies destas árvores, principalmente. Após cerca de 12 anos aqueles arbustos deram origem a árvores de porte considerável. Acabaram por transformar aquela área de cultivo em um bosque de razoável beleza ornamental.





A espécie nativa em período de chuvas. Imagem: Cláudio Gontijo/Lassance-MG













As Albizias (farinha-seca) já formando um pequeno bosque em período de estiagem. Imagem: Cláudio Gontijo/Lassance-MG




Esta espécie pioneira está ameaçada de extinção, suas flores de aspecto circular com os numerosos estames de cor branca, atraem insetos que promovem a polinização.

Outro detalhe interessante é que a espécie possui uma casca rica em substâncias de poder medicinal popular, usadas como adstringentes e depurativos.




A vegetação nativa em um período de estiagem maior. Imagem; Cláudio Gontijo/Lassance-MG







Uma parte da antiga área de cultivo, em propriedade anexa, e as árvores nativas à direita. Imagem; Cláudio Gontijo























sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Caminho de Deus







Não moldaremos a Fé em uma prática religiosa ritualística e estéril. A Fé nasce da relação íntima com Deus, alimentando-se da caridade, da humildade e da comunhão.

Humildes, adquirimos a certeza de que não somos os únicos escolhidos. Não nos revestiremos de uma armadura que nós fornece a sensação de predileção, porque somos ou fomos virtuosos. Em meio à caridade constataremos que a Misericórdia de Deus é compartilhada por todos. Todos seremos alimentados, chamados a estar próximos do Criador, em Comunhão.

O caminho que conduz à Fé é trabalhoso. Ao longo desta jornada seremos convidados a fazer escolhas que abdicam do egoísmo e da indiferença. A estrada é longa, muito longa, muitas vezes árida, e nos apresenta obstáculos que vão sendo amenizados  na medida em que avançamos para a mansidão e para o amor incondicional.

Durante esta busca abençoada muitos sentimentos purificarão a nossa alma, realçando a nossa procura, tornando-a Sagrada.




Texto e imagem: Cláudio Gontijo

sábado, 15 de agosto de 2015

Providência














Haverá um momento de dores e súplicas,
quando os joelhos se dobrarão por longo tempo,
marcados pela fé, pela perseverança.
Então haveremos de tocar as mãos sagradas,
outrora ensanguentadas,
agora vivas,
de Jesus.



































segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Tecidos






Hoje terminamos e arrematamos mais uma leva do que nos foi enviado.
Costuramos, cuidadosos, com tesoura e agulha.
Fechamos tantos e tantos agasalhos frágeis que necessitavam de reparos.
Alinhavamos toda a mágoa que através dos rasgos mostrava a pele fragilizada.
Fizemos remendos para vestir melhor e libertar os membros dos ressentimentos já velhos.
Braços, mãos, ávidos, que permaneceram expostos ao relento e à indiferença.
E continuamos porque tínhamos a urgência dos que sofrem com a dor alheia.
Cortamos aquilo que percebemos em disposição para a discórdia, com os botões quebrados.
Tingimos para que todas as vestes mostrassem cores de alegria,
cores da alma limpa e perfumada de jasmim.
E pedimos em nossas preces que continuássemos com a chance de reparar sem preconceito,
fazendo de novo novas peças de algodão e esperança,
com todas as tonalidades que nos fosse permitido,
até o fim do dia,
enquanto tecido tivéssemos.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Palavras





Muitas palavras  estão guardadas,
armazenadas e bem arrumadas,
em caixas de papelão,
em estojos de marfim,
em bolsas de múltiplos adornos,
em embalagens de papel de seda,
em embornais de couro cru,
nos cofres de aço,
nas linhas tecidas e bem amarradas
do corpo e da alma.
Se foram ditas, nem todos souberam,
alguns ouviram e maldisseram,
outros silenciaram,
outros ignoraram.
E aconteceu que também idolatraram,
emocionaram.
Porque foram malditas,
engolidas e escondidas,
contidas, distorcidas,
dilaceradas e profanadas,
Cantadas,
recitadas,
talhadas e arranjadas.
E, assim, costuradas ou estranguladas,
perderam-se quando rasgaram como lâminas,
enfeitaram na delicadeza,
perfuraram quando foram pontiagudas e intolerantes,
revitalizaram em gestos de misericórdia,
seduziram em paixões sem tamanho.
Quando vieram piedosas,
acalentaram o choro incontido,
transformaram o chão batido,
ampararam o corpo combalido.



domingo, 12 de julho de 2015

Água e vida

A água é um bem precioso. Se analisarmos a sua função de importância básica e fundamental para a manutenção da vida em todos os organismos vivos, podemos dizer que esta substância tem um valor que não se pode medir. Basta que nos lembremos de que mais de 65% do organismo humano é constituído por água, que ela está presente no líquido intersticial entre as inúmeras células e compõe a parte líquida do seu interior. Os vegetais apresentam mais de 75% deste líquido em sua constituição. Tomate, melancia, pepino, melão, laranja, como exemplos, apresentam mais de 90% de água em sua formação estrutural.  

Somente em nosso corpo a água:
- é veiculo para a manutenção da temperatura corporal.
- elimina todo o material orgânico indesejável através da excreção.
- forma fluídos indispensáveis como: sangue, suor, leite materno, lágrima, urina.
- é campo para inúmeras reações químicas metabólicas que ocorrem em nosso organismo para a manutenção da vida.
- é a via primordial para que ocorra a fecundação. 

Infelizmente a superfície terrestre possui apenas cerca de 2% de água doce em condições de servir os organismos vivos. A maior parte deste volume está congelada nas geleiras e em grandes profundidades subterrâneas da crosta terrestre. Temos, então, menos de 0,5% a ser utilizado.


É preciso considerar que o aquecimento da terra em face ao acúmulo de gases poluentes na atmosfera, produzidos pela indústria e veículos automotores principalmente, está alterando também a temperatura média dos oceanos. Este fator provoca modificações significativas no clima com períodos de redução drástica no índice pluviométrico em determinadas regiões. Quando a época de estiagem termina, a água trazida pelas chuvas não está sendo devidamente incorporada ao solo pois boa parte da vegetação foi retirada e já não há raízes suficientes para retê-la. A evaporação e a infiltração da água para partes mais profundas da crosta terrestre é uma realidade cada vez mais notável.



O leito seco de um córrego. Ribeirão São Gonçalo/Lassance-MG/Imagens: Cláudio Gontijo




Não queremos que este fenômeno continue o seu curso. Podemos fazer parte de um esforço conjunto para a preservação das nossas nascentes e rios. Precisamos evitar o corte indiscriminado de árvores. Esta ação torna-se cada vez mais indispensável e urgente, em face à desertificação crescente do planeta, da região onde moramos, enfim, de todas as paisagens ricas que outrora conhecemos.

Precisamos utilizar a Educação Ambiental para formar uma nova geração mais bem informada, consciente e ativa. Precisamos, cada vez mais, fazer o uso racional da água. Precisamos formar exemplos, sermos exemplo, para um futuro mais promissor. Para que a água continue a promover a vida, em todas as suas formas.

O sertão norte mineiro vive um momento preocupante e triste. Não chove regularmente a três anos, Os cursos d'água estão com seu volume aquífero reduzido a 1/3 da sua capacidade, outros já estão secos (como mostra a figura acima). Cisternas perfuradas pelos moradores a mais de 20 anos, sempre muito eficientes, estão secando uma a uma. Não é mais concebível que o cerrado possa perder mais vegetação. É preciso atenção em relação às florestas artificiais de eucalipto que transformam a paisagem natural, após o corte, em uma área semi desértica, pobre em nutrientes. Vale a pena o alto ganho do produtor com a madeira endereçada à produção de carvão e postes, ao custo da degradação profunda que a sua propriedade certamente irá sofrer? Quanto tempo estas áreas levarão para serem recuperadas? A que custo será possível recuperá-las ?







Esta é a paisagem que queremos. Imagens: Cláudio Gontijo/Lassance-MG



terça-feira, 30 de junho de 2015

Histórias do sertão 6: Raimundo Profeta










Enquanto caminhava, bem cedo, ao lado da manhã fria destes dias finais de junho, os passos se apressavam para que aquela atividade tivesse algum valor como exercício físico, aeróbico, ou seja lá o que podem inventar e chamar. É curioso como temos tempo para as metas que a ilusão vem entregar à porta de casa e que ainda planejamos, pensamos, retocamos, remendamos e requentamos. Não possuímos são os minutos necessários ao que pode ser cadenciado e nos é verdadeiramente essencial. Não que eu esteja livre de qualquer futilidade, mas tenho andado sem relógio nesta rua de nenhum tráfico que seja; nem uma carroça, nem um automóvel, um jumento, um velocípede. Como de costume, não havia muito movimento ali mesmo, naquela rua comprida, larga, que  acompanhava os trilhos de aço da ferrovia, que mostrava as ruínas de uma antiga estação de trens, que tinha bem conservado o seu calçamento de blocos de concreto. E tinha também muitas árvores, Ipês Roxos, por onde vinha o sol através do espaço que se fazia entre a folhagem.

Então veio como que deslizando pelos blocos da avenida o Raimundo Profeta e sua bicicleta muito bem conservada, limpa, de pneus novos e pintura verde. De uma forma quase silenciosa, a sua pessoa se aproximou e a fala quase que nem rompia os poucos ruídos  que iam conosco ao longo daquelas primeiras horas do dia. Ele fez a saudação com a forma contida que estampava ao longo de todos os anos que eu o conheci. A figura de roupas gastas e limpas, as pedaladas cautelosas, chinelos de dedo, o rosto de expressão comum, compunham aquele perfil. Provavelmente eu o avistei muitas e muitas vezes pelos cantos desta minúscula cidade. Mas era a portaria do pequeno hospital o seu lugar. Lá era possível encontrá-lo repetidas vezes, no turno da noite.

Ele segurava o guidão do veículo e vinha falando sobre o que andava fazendo. O discurso mais prolongado só veio diante da minha curiosidade, embora ele não fosse tímido ou econômico nas palavras. O que me parecia era que tinha destino certo, embora não impusesse mais velocidade no seu trajeto. Contou que a sua aposentadoria estava próxima, que já se tinham contados e anotados 33 anos. Com o acúmulo de férias não aproveitadas, folgas e adjacências, ele estaria longe daquela portaria já bem no início de 2016. Disse-me também que provavelmente era um dos mais antigos funcionários da prefeitura, ainda em atividade. Apontou o José das Pimentas como o mais antigo. Afirmou aliviado e muito decidido que foi muito proveitoso que tivesse tido a paciência necessária para permanecer estes anos todos, saltando de setor a setor nos galhos da administração pública. Todos os anos de contribuição previdenciária garantiriam a ele a justa pausa, o descanso calculado, que agora estava nitidamente estampado em seu olhar conclusivo.

A velocidade da sua trajetória diminuiu ainda mais. Com a mesma tranquilidade ele ainda me deixou que tinha mesmo o prazer naquele encontro e entrou no portão que dava acesso ao órgão de tratamento e fornecimento de água. O que faria ali ? Talvez fosse quitar alguma conta em atraso. Não o avistei mais, e nem a bicicleta.

De certa forma, admirei e até invejei aquele momento particular do amigo. A forma simplória e peculiar com que ele aguardava a sua parada definitiva. Não o desligamento oficial do seu labor público, mas a leveza estampada naquelas horas de sol ainda fraco. A certeza adquirida ao longo de todos os anos em que viveu em meio à simplicidade. Vou anotar que adquirimos até magoas e revoltas sem fim nem começo, mas, muitas vezes, pouca certeza. Valorizamos em sentido diminutivo aquilo que temos como tarefas. Até repudiamos a profissão, o ofício, sobretudo nas horas tempestuosas e tediosas, nas abençoadas segundas feiras.

Raimundo construiu seus bons valores quase como um anônimo ou imperceptível para aqueles que se achavam mais indispensáveis e bem aparentados. É bem realidade que este funcionário teve seus inúmeros entraves, teve suas diversas manhãs de pouco ânimo, tomou sol, sim, também tomou sol em múltiplas manhãs juninas, após o turno da noite. E é de se registrar que ele sempre pode iniciar a primavera que vinha amenizar a sua jornada de ferro, após um inverno nem sempre muito familiar. Pareceu-me bem claro, como o dia que ali nos tocava. Do contrário não estaria naquela rua para me noticiar a aposentadoria. O certo de todo este resumo, certo mesmo, é que ali, em meio ao pouco fluxo da Rua Expedicionários, passou por mim um homem, por assim dizer, com o sorriso que não se nota de pronto. O sorriso de alma limpa. Com a felicidade dos que se fazem cada vez mais vivos ao longo das manhãs de sol.  Sim, passou por mim o Raimundo Profeta, já a caminho de uma nova empreitada, de um novo tempo, de uma nova morada.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O mistério da Fé

Mesmo diante de toda evolução tecnológica, histórica, cultural que julgamos ter adquirido, nós ainda temos muitas verdades a serem aceitas. São verdades incômodas porque nos colocam diante daquilo que transcende a própria existência. Verdades múltiplas que se fundem a uma só; à grande e inquestionável natureza da Fé.








A Fé nos inquieta e nos coloca diante das nossas diferenças, das nossas imperfeições, das nossas fragilidades. Sem perceber podemos caminhar na trajetória inútil de dar à própria vida um sentido que a distancie daquilo que é Sagrado. Tudo porque a queremos acessível, fácil, nas prateleiras do nosso consumismo. Nós a queremos sob medida, sob encomenda para desejos pobres, aspirações doentias, vícios escravizantes. Queremos que ela nos proteja ou nos esconda daquilo que não desejamos estampar aos outros e, muitas vezes, nem a nós mesmos.











Não moldaremos a Fé em nenhum Templo, em nenhuma corrente religiosa, nem sob o aval de nenhum profeta. Simplesmente porque ela é germinada e nasce com a nossa própria face, ela está em nós, na nossa porção de verdade e amor. Ela é insondável porque representa a própria Criação em nós, representa Deus em nós mesmos. Mesmo que respeitemos e acreditemos em dogmas, ritualismos, princípios fundamentais religiosos, só teremos a experiência da Fé quando renunciarmos a tudo o que nos diminui, tudo o que nos distancia da partilha, que nos distancia da proximidade real com o outro que caminha conosco. Se renunciamos temos a possibilidade de enxergar toda a existência sob a ótica da inteligência superior que nos direciona à comunhão, caminharemos com a fecundidade necessária para a experiência de verdade e vida plena.










A tentativa de fragmentar a Fé, de subdividi-la em pedaços a serem oferecidos como presentes mentirosos e tendenciosos, nos enfraquece, nos distancia do amor de Deus. Mesmo que possamos vivenciar e testemunhar os seus benefícios, nos nunca poderemos decifrá-la enquanto seres humanos. Este mistério só nos será revelado quando formos chamados a viver uma só vida, na Eternidade.

Ainda assim a nossa existência terrena só terá sentido se nos dispusermos, em árdua jornada, a experimentarmos a grandiosidade da Fé.



Texto e imagens: Cláudio Gontijo


domingo, 14 de junho de 2015

Feridas





Que a esperança,
possa nos livrar do sentimento de rancor e amargura,
que chega à luz do dia para amortecer toda a fé e a alegria.
Todas estas feridas que experimentamos não vêm do que é Sagrado.
Nós é que as criamos com máscaras douradas de perfeição,
disfarçando nossas fragilidades com o que é artificial e imensurável.
Mesmo que escureça e ainda estejamos aqui, diante desta oração,
preferimos acender a luz,
a nos lamentarmos na escuridão.








Texto e imagem: Cláudio Gontijo/Lassance-MG

terça-feira, 26 de maio de 2015

Comunhão







Diversos e múltiplos é que somos,
e é nas cores, amores e louvores,
que procuramos,
um acordo,
uma trégua,
um olhar de piedade,
uma mão, ainda que trêmula,
mas pulsante,
enquanto vivemos.
Pactos que nos tornem mais próximos, que faça aparar todas as arestas e pontas,
que rasgam a pele.
Somos aquarelas variadas de almas que brincam e dançam, que gritam e reclamam,
colhendo gotas de lágrimas, orvalho e suor.
Depressa, corremos nesta lida quase instantânea,
e nem percebemos que o tempo nos une.
Ao longo dos dias, das horas, das dores,
caminhamos, de fato, em uma só jornada.
Somos, em verdade, membros de um só corpo,
uma só Fé, uma só Súplica,
em Comunhão.
Em desespero, em choro,
em horas incertas, em noites insones,
em alegria incontida,
em euforia descabida,
em alvoradas descortinadas,
em tempestades súbitas,
em vidas que vão e vêm,
em portas abertas,
pelo tempo,
pela criação,
pela dúvida,
pela esperança,
pela graça,
pela luz,
pela tormenta,
pelas flores,
pelos cânticos,
pelas ladainhas,
pelos terços,
pelo abraço,
pela vida,
eternamente,
somos, seremos,
e faremos,
uma só Oração.



domingo, 3 de maio de 2015

Podas e silêncio




Uns mais outros menos. Todos nós prestamos atenção em algum tipo de vegetal; nas flores e frutos (principalmente os comestíveis). Quando buscamos algum tipo de informação, está escrito que há a necessidade de adubar e podar corretamente as plantas.

Assim como os vegetais, nós também necessitamos destes cuidados especiais. Ao fertilizarmos a nossa existência e apararmos os excessos, crescemos para uma vida de altruísmo, beneficiamos mais pessoas. O egoísmo é um fungo que impede o olhar de amplitude, abafa a sensibilidade para com aqueles que necessitam de acolhimento. Ele se espalha rapidamente e cresce na medida em que não contemos nossos impulsos individualistas. Se não cortamos e lançamos fora a falta de solidariedade, a tendência egocêntrica, vamos nos encolhendo, atrofiando nossos impulsos para a amizade. Vamos nos tornando mais pobres para a partilha, para uma vida de comunhão.

Sem a poda necessária ao caminho da simplicidade, perdemos a seiva, perdemos a alma e somos facilmente lançados a algum tipo de fogueira. A fogueira das vaidades; frágeis.

O silêncio e a oração, reabilitam. São nutrientes para as raízes. Reacendem as chamas da paz. Acalentam flores do coração, frutificam a esperança. Mesmo que nem sempre tenhamos a possibilidade do silêncio ou não estejamos dispostos a fazê-lo, precisamos nos esforçar para nos colocarmos longe do barulho que nos confunde. Assim serão realizadas as podas, e as nossas preces serão cada vez mais férteis.













"Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto se não permanecerem na videira. Vocês também não podem dar fruto se não permanecerem em mim".  João 15:4